Este texto reúne comentários e reflexões sobre os artigos da série 'O que significa?', abordando temas como deficiência, capacitismo e acessibilidade.
Apresentação
Olá, mundo!
Eu sou a Louise Suelen e estou aqui para comentar sobre três assuntos muito importantes e, muitas vezes, mal compreendidos que estão nos artigos:
Nestes artigos, a minha intenção foi explicar cada termo com calma, com base em estudos, leis, ciência e com reflexões pessoais. Eu tentei deixar claro quando algo era opinião minha e quando era informação retirada de fontes confiáveis. Já aqui, se trata de um artigo de opinião, então compartilharei predominantemente minhas perspectivas pessoais.
Por que eu comecei os artigos pela história?
Imagine que uma equipe de desenvolvimento resolveu “consertar” a humanidade. O primeiro ticket aberto (tarefa aberta) no sistema seria:
“Deficiência: comportamento inesperado”.
E, como em todo projeto de software, surgiria a pergunta: “Mas será que isso é mesmo um bug (erro), ou só uma característica que ninguém documentou direito?”
Brincadeiras à parte, a analogia não é à toa. Quando falamos em deficiência, o que aparece primeiro para muita gente é o que o corpo da pessoa “não consegue fazer”. É como se a deficiência fosse uma falha de sistema — algo que precisa ser corrigido, adaptado, “ajeitado”. Mas essa visão é profundamente limitada, porque ignora tudo o que está ao redor: história, cultura, ciência, sociedade. E, principalmente, ignora a forma como o mundo reage ao corpo diferente.
Por isso comecei justamente pela história, não por saudosismo, nem para justificar erros do passado — mas porque é impossível entender o presente sem olhar com atenção para os caminhos que nos trouxeram até aqui.
Um passeio necessário pela história
Não dá para aprofundar aqui todos os detalhes, mas é importante lembrar que o modo como as sociedades enxergaram a deficiência mudou bastante ao longo dos séculos. Em alguns períodos, pessoas com deficiência foram tratadas como aberração. Em outros, como castigo divino. Em outros, como máquinas quebradas que deveriam ser consertadas para voltarem à produção.
E, finalmente, mais recentemente, como pessoa sujeita de direitos.
O chamado modelo social da deficiência, que ganhou força no pós-Segunda Guerra Mundial, começou a mudar o foco: a deficiência não está no corpo, mas na relação entre o corpo e as barreiras sociais e ambientais.
Isso muda tudo. Antes, se uma pessoa usuária de cadeira de rodas chegasse a um prédio sem rampas ou elevadores, o “problema” era dela — “ela que dê um jeito”. Hoje, começamos a entender que a restrição está na arquitetura do prédio, e não na pessoa que não consegue entrar.
Eu não vou listar aqui cada momento histórico, mas quero enfatizar: o que antes era visto como problema individual, hoje é cada vez mais entendido como questão coletiva.
Voltanddo ao exemplo do prédio, se antes a sociedade dizia “ela que se vire”, hoje a pergunta é: “como podemos tornar esse espaço acessível para todas as pessoas? Já que muitas pessoas com diferentes necessidades podem precisar de adaptações diferentes para acessar esse prédio!” Quanto mais acessível, mais pessoas podem entrar — e isso é bom para todo mundo.
A história não justifica, mas explica
É sempre bom lembrar: o passado não pode ser julgado com os critérios do presente. Muitas atitudes hoje vistas como cruéis eram, em suas épocas, o padrão. Mas isso não significa que devamos perdoar ou esquecer. Significa que precisamos entender como essas ideias surgiram e se consolidaram — para evitarmos repetir os mesmos erros.
A história é retrovisor. Não serve para dirigir, mas mostra por onde a gente veio. E mostra também que direitos não são dados, são conquistados. Eles não vêm de graça — e, pior, podem ir embora se a gente se distrair.
Por isso, quando alguém diz que “já está bom”, que “não precisa de mais luta”, que “a sociedade já mudou bastante”, eu acendo todos os alertas. Porque sei que todo direito pode ser desfeito. E que toda conquista corre o risco de ser desmontada, uma portaria de cada vez.
O capacitismo está em todo lugar
Quando a gente não entende bem o que é deficiência, acaba naturalizando o capacitismo — o preconceito contra pessoas com deficiência. E ele está em tudo: na piada que parece “inofensiva”, na exclusão disfarçada de “falta de perfil”, na infantilização constante. É o famoso “tadinha”, “exemplo de superação”, “isso é pra mostrar que tudo é possível”.
A verdade é que ninguém quer ser tratado como um símbolo, muito menos como um peso. A gente quer viver, trabalhar, participar, ser ouvida, disputar espaços reais com as mesmas condições, tendo as nossas necessidades respeitadas, mas sem ser vista como “beneficiada” ou “coitadinha”.
E aí entra a acessibilidade. Que não é favor. É direito. E não se resume a uma rampa ou a um site “meio acessível”. Acessibilidade é planejamento, é política, é atitude. É pensar o mundo desde o início para que todas as pessoas possam acessá-lo — e não tentar “remendar” depois.
A lei importa (e muito)
Tem gente que diz que a lei é só um pedaço de papel, mas, para quem teve a vida marcada pela exclusão, a existência da lei é um marco. É o começo de uma mudança de rota, é o mínimo de dignidade possível.
Eu falo com propriedade: como pessoa cega, eu não acredito que teria um emprego formal no Brasil se não fosse a existência da lei nº 8.213/91, que obriga empresas com mais de 100 funcionários a reservarem vagas para pessoas com deficiência.
Não, ela não me garantiu estabilidade no emprego com base na minha deficiência, nem promoção automática, nem salários maiores do que os salários de pessoas sem deficiência. Ela me garantiu a chance de tentar — e era isso que eu precisava. Antes da lei, muitas pessoas com deficiência eram eliminadas da seleção antes mesmo de começarem. Hoje, apesar de todos os desafios, o cenário é diferente, não perfeito, porém “menos pior” do que antes.
Respeito quem pensa diferente, inclusive pessoas com deficiência que não concordam com cotas, acham que elas “tiram o mérito”, que “basta ter competência” ou “se esforçar mais” para conseguir um emprego e que a lei “não serve para nada”. Eu respeito, mas não concordo! Eu não compartilho desse pensamento, porque estatísticas mostram que as pessoas com deficiência ainda enfrentam barreiras enormes no mercado de trabalho, e a lei é uma forma de garantir que essas barreiras sejam minimizadas.
Se a situação já é complexa hoje, com a lei, como era antes dela? Sou o reflexo de que a lei faz diferença e me dignifica como pessoa no mercado de trabalho, não me sinto menos capaz por causa disso, pelo contrário, me sinto mais capaz e com mais oportunidades que eu sei que não teria se não fosse a lei, porque com ela eu já “ralei” (trabalhei duro) para conseguir um emprego, sem ela eu não teria nem começado.
Em outro momento, provavelmente, eu vou escrever um artigo sobre as minhas experiências tentando conseguir um emprego em Ilhéus - BA. Como assisti meus colegas sem deficiência conseguirem empregos, mesmo sem serem “super esforçados”, enquanto eu não conseguia nem ser chamada para entrevistas.
Muitos deles conseguiram sua primeira oportunidade de trabalho por meio de convites, de um professor da nossa universidade (UESC) que dava aulas no curso de Ciência da Computação, professor esse que, inclusive, dava aulas 100% visuais na minha turma, deliberadamente (sem considerar a minha condição). Nem comigo ele falava, estava empenhado em demonstrar que eu era um “desperdício de vaga”.
Esse cara deu estágio e emprego para vários colegas meus, mas nunca me chamou para nada, de antemão ele assumiu que eu não conseguiria fazer nada, porque eu era cega. Imagina um cara desses como chefe de uma empresa, com mais de 100 funcionários, e eu tentando uma vaga lá. Sem a lei, sabe quando ele me contrataria? Nunca!
E, eu sei que não é pessoal, ele não contrataria nem eu nem ninguém com deficiência se pudesse evitar, porque ele não acredita que pessoas com deficiência possam ser tão capazes quanto as pessoas sem deficiência. Daí a importância da lei, que tira da esfera do “achismo” e coloca na esfera do “direito”.
As empresas não podem mais assumir que candidatos com deficiência não são capazes, porque a lei diz que elas devem considerar essas pessoas como candidatas reais. Ou seja, pelo menos, elas têm que dar uma chance de tentar.
Este é só um exemplo, para demonstrar que sim, a lei importa. Ela não é perfeita, precisa ser efetivada, fiscalizada, aprimorada, mas é um passo fundamental para garantir que pessoas com deficiência tenham acesso a oportunidades que antes eram negadas.
Acessibilidade não é uma solução única
Você já deve ter ouvido por aí que acessibilidade é um “princípio transversal”. À primeira vista, isso pode parecer uma expressão complicada, meio teórica. Mas, na prática, é simples: acessibilidade precisa estar em tudo — na escola, no hospital, na calçada, no aplicativo, no cinema, no emprego, na página da internet, no modo como a gente trata as pessoas.
E por isso mesmo não existe uma acessibilidade genérica que sirva para todo mundo. A acessibilidade precisa ser pensada conforme o contexto, a situação, o ambiente, a tecnologia, o momento — e, principalmente, conforme as pessoas envolvidas.
Não adianta querer resolver tudo com uma única rampa, um único formato, uma única solução.
Existem diversos tipos de acessibilidade — e todos são importantes. Eles não competem entre si e não formam uma hierarquia. Cada um tem sua função. Veja algumas categorias básicas:
- Arquitetônica: rampas, elevadores, banheiros adaptados, piso tátil.
- Digital: sites e aplicativos acessíveis, leitores de tela, descrições de imagem.
- Informacional e comunicacional: Libras, legendas, materiais em braile ou áudio.
- Atitudinal: acolhimento, empatia, combate a preconceitos.
- Pedagógica: currículo adaptado, metodologias inclusivas.
- Cultural: acesso à arte, teatro, exposições, livros.
- Transporte: ônibus adaptados, sinalização em estações, transporte público acessível.
É muita coisa. E é exatamente por isso que a acessibilidade não pode ser pensada com base apenas na nossa própria experiência.
Mas e quando a acessibilidade entra em disputa entre nós?
Ser pessoa com deficiência não quer dizer que você entende tudo sobre acessibilidade. Isso pode parecer contraditório, mas é a realidade. Conviver com deficiência não garante, automaticamente, um entendimento profundo e coletivo sobre o tema.
Eu mesma, como pessoa cega, já publiquei vídeos sem audiodescrição e acessei conteúdos de outras pessoas cegas igualmente inacessíveis. Às vezes, a gente pede por acessibilidade para si, mas esquece que também deve criar acessibilidade para outras pessoas com deficiência que precisam de recursos diferentes dos nossos.
E esse esquecimento revela dois problemas profundos e, muitas vezes, pouco falados.
1. O capacitismo entre pessoas com deficiência
Sim, ele existe. E eu dei a esse fenômeno um apelido simbólico:
A dança do “pior de todos”.
É como se estivéssemos disputando quem sofre mais, quem enfrenta mais barreiras, quem “merece” mais acessibilidade. Já ouvi coisas do tipo:
“Minha deficiência é mais severa, então eu preciso mais do que você.”
“Fulano já é ‘inaproveitável’, então nem vale o esforço de tornar o mundo acessível pra ele.”
Essa lógica é perversa. Ela transforma a luta por inclusão em uma competição de miséria. E, o que é pior, reproduz entre nós o mesmo capacitismo que a sociedade nos impõe.
Já vivi isso em Barreiras, minha cidade natal. Em uma reunião para criar uma associação de pessoas com deficiência, algumas pessoas queriam excluir quem tinha baixa visão ou outras deficiências. Um participante cego chegou a dizer que quem usava cadeira de rodas tinha menos dificuldade que ele, porque conseguia dirigir ou usar o celular sem leitor de telas.
Aquilo me doeu. Porque desafios diferentes não são menos desafiadores. São só diferentes.
Já vi isso acontecer em outros contextos também, quando era criança estudava com cinco colegas surdos e uma colega surdocega, ela não era incluída no grupo deles, não pela questão da língua (porque ela também se comunicava em Libras), mas pelas questões ligadas ao não enxergar. Ou seja, a colega surdocega não era incluída porque não enxergava, e os colegas surdos não a consideravam como parte do grupo deles, mesmo ela não tendo barreiras de comunicação com a língua de sinais.
Outra situação aconteceu comigo, eu estava em um grupo (de movimentos sociais) e pedi a uma pessoa, que está dentro do espectro autista (TEA), para me ajudar a pedir o restante do grupo para colocar descrição nas imagens que mandavam. A resposta que eu tive foi “Ah, mas assim… Não dá só para você pular as imagens com o seu leitor ou pedir alguém da sua casa para te ajudar? É que eu acho que o pessoal não consegue fazer isso não”.
Detalhe: eu tinha mandado um vídeo e materiais mostrando como fazer descrição de imagens, e essa pessoa tinha visto os materiais, mas não quis fazer.
Em outras palavras, o capacitismo entre as pessoas com deficiência existe sim, infelizmente… Às vezes por falta de informação. Às vezes por dor acumulada. Às vezes por disputa por recursos que já são escassos, mas é capacitismo do mesmo jeito. Negar isso é como dizer que as pessoas com deficiência não são pessoas, pois elas também reproduzem preconceitos e discriminações, porque nascem e se desenvolvem dentro de uma sociedade capacitista como todas as outras pessoas.
Esse capacitismo interno é capacitismo do mesmo jeito porque é quando a gente se apega à lógica da escassez, como se só houvesse acessibilidade suficiente pra uma ou duas deficiências de cada vez. É quando a gente também mede o valor da pessoa pelo corpo ou pela mente, igual as pessoas capacitistas sem deficiência fazem, de acordo com a sua própria régua.
Mas a verdade é que acessibilidade não é uma competição, ela é um direito. E nenhum direito precisa ser arrancado do outro pra existir. A acessibilidade pode — e deve — ser diversa, simultânea, interseccional.
Cada pessoa com deficiência tem necessidades únicas. A acessibilidade não deve ser pensada como escassa ou exclusiva. Ela é um direito coletivo e plural.
A luta por direitos é coletiva, não dá pra construir um mundo acessível se a gente repete entre nós o mesmo tipo de exclusão que a sociedade já nos impõe. Cada pessoa com deficiência tem necessidades específicas, experiências únicas, formas diferentes de estar no mundo e todas merecem respeito, escuta, representatividade e — claro — acessibilidade sob medida.
Então, se você já se pegou dançando essa “dança do pior de todos”, não se culpe. Mas também não permaneça nela, porque a verdadeira revolução acessível não vem de quem disputa lugar — vem de quem constrói pontes.
2. A falta de metacessibilidade
Em computação, temos um conceito chamado de metadados, que são dados sobre dados. Por exemplo, uma foto pode ter metadados como data, hora, localização e até informações sobre a câmera usada para tirá-la. Ou seja, o dado é a foto, e os metadados são as informações que descrevem essa foto.
Pois bem, eu uso a palavra “metacessibilidade”, que eu nem sei se existe ou não, para descrever um conceito semelhante ao de metadados, mas aplicado à acessibilidade. É a acessibilidade sobre a acessibilidade.
É quando a gente, dentro da própria comunidade de pessoas com deficiência, aprende sobre as acessibilidades que outras pessoas precisam — mesmo que não seja a nossa.
- É uma pessoa cega que aprende sobre surdez e não publica vídeos sem legenda.
- É uma pessoa usuária de cadeira de rodas que evita termos ofensivos sobre deficiência intelectual.
- É uma pessoa autista que compreende que uma pessoa cega precisa de descrição de imagem.
- É uma pessoa com baixa visão que entende o impacto da poluição sonora ou visual para quem é neurodivergente.
A metacessibilidade é o exercício de promover a acessibilidade dentro da própria comunidade. É parar de agir como se apenas o outro devesse criar acessibilidade para nós. É assumir que nós também temos responsabilidade nessa construção.
Afinal, se eu exijo que um site seja acessível ao meu leitor de telas, eu também devo me importar se ele tem legendas ou intérprete de Libras para outras pessoas com deficiência. Não basta cobrar acessibilidade vinda de fora — ela também precisa vir de dentro pra dentro.
Estamos acostumadas a pensar para fora da bolha (sociedade em geral):
- “A prefeitura precisa fazer isso.”
- “A empresa precisa adaptar aquilo.”
- “A escola precisa se preparar.”
Mas… e quando é uma pessoa com deficiência do nosso lado que precisa de algo diferente?
Será que acolhemos? Será que adaptamos nossas ações, criações, eventos e espaços?
A verdade é que, para outras pessoas com deficiência, nós também somos o mundo lá fora. E isso exige uma revisão contínua dos nossos comportamentos.
Construir um mundo acessível não é só lutar por mim. É lutar com você, por você, com todas as pessoas com deficiência.
A acessibilidade não é uma competição. Ela não deve ser pensada como uma moeda escassa ou um privilégio disputado. Ela é um direito fundamental. E um direito só é pleno quando é estendido a todas as pessoas, independentemente de sua condição, grau de dependência ou tipo de deficiência.
Se queremos um mundo mais justo, acessível e inclusivo, precisamos fazer por outras pessoas com deficiência aquilo que exigimos que façam por nós.
Sim, o capacitismo estrutural é uma força enorme que vem da sociedade em geral. Mas a nossa resposta a ele precisa ser unida, coerente e empática. A verdadeira inclusão não nasce da competição por atenção, e sim da escuta e do compromisso mútuo.
Porque a acessibilidade que transforma o mundo é aquela construída com muitas vivências e corpos diversos.
E isso, para mim, é o verdadeiro significado de comunidade — um espaço onde cada necessidade é respeitada, e onde a luta por direitos é coletiva, não individual. Esse é o sentido de estar junto e lutar por um mundo mais acessível para todas as pessoas.
Para concluir
Como expliquei na minha página de apresentação, o primeiro artigo do site foi o “Deficiência: O que significa?”. Ele foi construído antes mesmo do site existir.
Graças a uma experiência que tive com um coordenador do meu antigo curso de bacharelado em Ciência da Computação, na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) onde eu estudava, escrevi dentro do artigo o texto sobre deficiência feito por pessoa com deficiência. Esse é um texto que eu escrevi em 2020, mas que só foi publicado no site recentemente.
Quero concluir meus comentários neste artigo falando sobre a mensagem que eu tentei passar nesse texto, lá no primeiro artigo do site. Essa mensagem é literalmente como eu me sinto, de um jeito que não consigo verbalizar, que é doloroso, mas que é a minha verdade… É como eu estou por dentro.
Essa é uma das partes mais difíceis de escrever, porque é muito pessoal, mas ao mesmo tempo é muito importante para mim conseguir detalhar o que queria expor nesse texto.
Vamos lá…
Primeiramente, eu queria denunciar as máscaras da inclusão performática, pois ser pessoa com deficiência na sociedade é, muitas vezes, viver numa novela ruim onde nos colocam no papel do coitado inspirador, da vítima resiliente, do exemplo de superação. Mas a verdade é que a gente é muito mais do que um enfeite em campanha de marketing social.
- Se for pra propaganda, querem nossa presença.
- Se for pra universidade, alegam que “não estão preparados”.
- Se for no trabalho, dizem que “não temos o perfil”.
- Se for na fila do ônibus, batem a porta na nossa cara.
E depois? Depois tem textão dizendo que a inclusão é linda.
Queria evidenciar que a gente é tema de discurso bonito em datas comemorativas, nas campanhas eleitorais, nas plaquinhas de “inclusão” com fontes em Comic Sans. Mas quando chega a hora de garantir nosso acesso à escola, ao trabalho, à saúde, à rua…
“Agora não dá, é que temos outras prioridades…”
Aí entra em cena a famosa “extrema importância adiada”. Aquela que só vale se for pra foto nas redes sociais, ou pra emocionar o auditório com uma música de fundo tocando piano triste.
Depois vem aquela comparação clássica:
“Ah, eu também sofro, também tive dificuldades na faculdade, também peguei ônibus lotado…”
Sim, as dificuldades existem para todas as pessoas, mas sabe qual é a diferença?
- É que você pega um ônibus cheio, eu espero três horas por um que aceite minha cadeira.
- É que você precisa estudar pra prova, eu preciso ensinar o professor a dar aula pra mim antes de conseguir estudar.
- É que você se atrasa porque o metrô quebrou, eu nem entro porque não tem como subir com minha bengala.
- Você não lê porque não tem tempo, ou porque não gosta, ou por qualquer outro motivo. Eu não leio porque o site não é acessível, ou porque o livro não tem suporte a software leitor de telas, não conseguiria ler mesmo que quisesse, ou tivesse todo o tempo do mundo.
Dizer que “é tudo igual” é como comparar um arranhão com uma cirurgia. É desonesto — mesmo que sem intenção.
A deficiência não é só uma característica. Ela vem junto com impedimentos que interagem com o ambiente: com atitudes, com regras, com estruturas. E esse pacote completo gera barreiras que não afetam só o corpo — mas a forma como o mundo nos percebe.
- Não somos eternas crianças.
- Não somos anjos ou lições de moral ambulantes.
- Não somos erros de fábrica que precisam ser consertados.
- E não somos especiais no sentido de “intocáveis” — somos pessoas que querem viver, estudar, amar, existir.
Em segundo lugar, eu queria denunciar no meu artigo a fadiga de acesso, ou estresse de minorias, que é um conceito que descreve o desgaste emocional e físico que pessoas de grupos minoritários enfrentam ao lutar por seus direitos e reconhecimento.
- É quando questionamos, e as pessoas dizem que é “falta de paciência”.
- É quando explicamos, e as pessoas dizem que estamos “levando pro pessoal”.
- É quando denunciamos, e as pessoas dizem que viramos “radicais”.
Ninguém percebe que é isso todo dia, toda hora, em todo lugar. É como se a gente estivesse sempre numa batalha invisível, lutando contra um inimigo que não vê a gente como gente. Além disso, parece que as pessoas esperam que a gente agradeça por qualquer migalha, e quando a gente não agradece, acham que o problema é a nossa atitude.
Ser pessoa com deficiência não anula outros marcadores sociais, na verdade esses marcadores sociais se entrelaçam e criam uma teia complexa de opressões. Por exemplo, uma mulher com deficiência tem que lidar com o capacitismo e o machismo ao mesmo tempo. E isso não é só uma questão de “dupla jornada” — é uma questão de sobrevivência.
Adicione outros marcadores sociais que também podemos ser, como:
- mulheres,
- pretas,
- lésbicas ou bissexuais,
- mães solo,
- periféricas,
- trans,
- indígenas,
- pobres.
E tudo isso junto faz diferença? Sim, faz diferença e muita! A interseccionalidade é real, só que quando se fala de deficiência, todo o resto desaparece. Somos “os deficientes”, ponto. Invisibilizados dentro da própria invisibilidade.
Por isso que eu defendo: a gente fala, a gente grita, mas é como se nossas palavras ecoassem em uma sala vazia. As pessoas nos dizem:
- “Aguenta mais um pouco.”
- “Tenha paciência, o mundo tá aprendendo.”
- “Você precisa ensinar.”
Só que ensinar cansa, cansa demais… E, ensinar quando ninguém quer aprender é como dar aula pra plateia que só entrou pela comida grátis.
A gente tá o tempo todo tendo que ensinar a ser incluída, a ser respeitada, a como coexistir no “mundo normal”. E além de tudo, o pessoal quer que você seja uma pessoa simpática, que não reclame, que não seja “chata”, sendo que todo dia:
- Antes de estudar, tem que convencer a escola.
- Antes de trabalhar, tem que convencer a empresa.
- Antes de viver, tem que justificar por que você merece.
Poxa, é cansativo demais! E não estamos pedindo muito, só queremos existir. Não somos personagens coadjuvantes da história de ninguém, queremos ser protagonistas da nossa. É só isso!
por isso finalizei o meu texto com uma simulação, como se fosse o “mundo” falando com a gente sobre nossas reivindicações, e eu queria que você lesse com atenção:
“Nós o mundo estamos aprendendo e você precisa entender que é um processo lento, demorado e gradual precisamos de você para nos ensinar mesmo que não tenhamos vontade de aprender, você precisa compreender e ter paciência conosco, precisa ser resiliente, persistente, autossuficiente e ter bom humor. Enquanto isso nós… Bom na verdade nós nada, sorte sua se convencer alguns de que tem razão, parece injusto? Você precisa se esforçar, é assim com todo mundo, você não é especial.”
Esse é meu sentimento e desabafo! Tenho certeza que muitas outras pessoas com deficiência se sentem assim, e é por isso que eu escrevi esse texto. Se você chegou até aqui, espero que tenha entendido a mensagem que eu queria passar.
A deficiência é uma parte da vida, mas não define tudo e a luta por acessibilidade, contra o capacitismo, é uma luta de todos nós, não só das pessoas com deficiência.