Deficiência: o que significa?
Apresentação
Existem determinados assuntos que afastam as pessoas sem conhecimento, astrofísica, engenharia elétrica, matemática, cardiologia e afins costumam receber o rótulo de “complicados” e isso gera intimidação, as pessoas não comentam por medo. Por outro lado, existem aqueles assuntos que a maioria das pessoas também não tem conhecimento, só que elas acreditam ter e esse é justamente o problema. Culinária, música, política, método científico e educação física são exemplos de assuntos que todo mundo acredita não apenas que entende, mas que domina, inclusive muitos afirmam que especialistas nessas áreas não são necessários.
Esses são assuntos que em uma visão simplista da realidade “são fáceis” e “qualquer pessoa” mesmo sem base acadêmica pode estudar, aplicar para si e ensinar a terceiros “sem risco nenhum” porque não existem riscos se tratando desses temas. Ou seja, nessas questões alguém acha que sabe muito, porém sabe pouco, existe um nome para isso efeito Dunning-Kruger que é chamado assim por conta dos psicólogos que o demonstraram em 1999 David Alan Dunning e Justin Kruger.
O Efeito Dunning-Kruger, também chamado de Efeito de Superioridade Ilusória, é a expressão empregada para designar a ignorância, a incapacidade, a inconsciência ou falta de habilidade das pessoas em reconhecer a própria incompetência e seus erros, bem como em estimar a dificuldade de tarefas e atividades nas quais estão envolvidas (MIGUEL, 2017, p. 277).
Segundo o autor o efeito Dunning-Kruger se manifesta através de uma análise equivocada e superestimada sobre seu nível de conhecimento em relação a algum assunto, a consequência disso é que alguém quando sabe pouco sobre algo pode ter tendências a uma falsa sensação de superioridade. Isso ocorre porque a falta de conhecimento impede a correta identificação da complexidade de um tema. O presente trabalho defende a hipótese de que a deficiência é um assunto que sofre severamente com o efeito Dunning-Kruger, parte-se do pressuposto de que o referencial do qual se observa essa característica não somente altera, mas produz interpretações opostas sobre o significado da palavra deficiência.
Pessoas sem contato com a deficiência
Aqueles que não possuem nenhum contato com a deficiência partem do referencial de observação do estereótipo de incapacidade, inferioridade e sofrimento constante.
Mãe de pessoa com deficiência isolada
A mãe de uma pessoa com deficiência, sem contexto de pesquisa e isolada, parte do referencial de observação do luto, da superproteção, da preocupação e dificuldades constantes de todos os tipos.
Pessoas com deficiência
Uma pessoa com deficiência, baseando-se apenas nas suas vivências e sem o conhecimento histórico da sua condição, parte do referencial de observação do estigma, da falta de acessos e da violência social.
Profissionais da educação
Profissionais da educação, sem formação em educação inclusiva, partem, muitas vezes, do referencial de observação das crenças na eficácia de “escolas especiais” e terceirização da docência para o serviço de atendimento educacional especializado.
Pessoas pesquisadoras
Pessoas pesquisadoras partem do referencial de observação do estudo de caso, da análise de documentos e da comparação de dados. Mas, muitas vezes, sem a vivência da deficiência ou o contato íntimo com uma pessoa com deficiência, não conseguem se aprofundar na complexidade do cotidiano, onde a deficiência se relaciona com o contexto social e outras condições de vida.
Os referenciais de análise da deficiência, mencionados anteriormente na hipótese deste trabalho, são infinitos, pois resultam da combinação de diversos fatores socioeconômicos que moldam a visão de quem observa. Marcadores sociais como gênero, etnia, orientação sexual, cultura, religião e classe econômica influenciam a percepção individual sobre a deficiência, constituindo assim um referencial. Analogamente à Física, onde um referencial é o ponto de observação de fenômenos, a deficiência também é vista como um fenômeno sociológico e, portanto, analisada de maneira semelhante a outros fenômenos. Assim como na Física, ao mudar o referencial, a percepção dos fenômenos se altera. Isso também ocorre na percepção da deficiência, onde os marcadores socioeconômicos impactam a interpretação.
Destacar essa influência é crucial para garantir transparência, ética e clareza na mensagem transmitida, além de tornar explícita a finalidade deste artigo. Convida-se o leitor a refletir sobre o material apresentado, evitando o efeito Dunning-Kruger, e reconhecendo que este trabalho pode agregar conhecimento independentemente do referencial de observação da deficiência adotado.
Este artigo foi construído utilizando o método qualitativo bibliográfico, fundamentado em leis e diversas áreas do conhecimento, como sociologia, história e política. O texto é laico e sincero em suas proposições, buscando sempre distinguir o que é autoral do que é baseado em pesquisa, com referências disponíveis.
Por questões de honestidade intelectual, reconhece-se a ausência de total imparcialidade neste trabalho, que é influenciado pelo referencial de observação da autora. A autora, uma pessoa com deficiência visual congênita, luta diariamente para desconstruir os preconceitos que também possui. O objetivo é refletir sobre o significado da palavra deficiência sob um viés histórico-social, fundamentado em pesquisa e ciência, com uma leve pitada de desabafos pessoais.
História da deficiência
Para entender como a relação entre a humanidade e a deficiência evoluiu, é importante olhar para a história. Como diz a famosa frase, "aqueles que não conhecem a história estão fadados a repeti-la". Portanto, este texto vai apresentar os caminhos já trilhados e superados ao longo do tempo.
Coma (1992, p. 63) afirma que "doenças graves e deficiências existem desde os primórdios da vida."
No estudo "A epopeia ignorada" de Silva (1987), é destacado que existiam simbolismos e crenças relacionados às pessoas com deficiência, mostrando como eram tratadas desde o período Paleolítico Superior (40.000 a.C.).
Nesse tempo remoto, a sobrevivência de alguém com deficiência era muito rara, quase impossível, porque a sobrevivência em geral era difícil. Crianças, idosos, mulheres e qualquer pessoa com vulnerabilidade tinham poucas chances de viver. Mesmo homens jovens e fortes, que teoricamente tinham mais chances, podiam morrer facilmente por qualquer vulnerabilidade, como um simples corte no pé que os impedisse de correr.
Egito Antigo
No Egito Antigo, os médicos acreditavam que deficiências, transtornos e doenças graves eram causados por demônios, maus espíritos ou débitos de vidas passadas. Eles achavam que essas pessoas não poderiam ser mortas, apenas os "deuses" poderiam fazer isso, e acreditavam fortemente no poder divino transmitido aos médicos-sacerdotes (SILVA, 1987, p. 79).
Esses médicos eram especialistas nos "Livros Sagrados" sobre doenças e suas possíveis curas, com uma preparação que durava anos. Assim, eram qualificados para dar assistência médica a pessoas com deficiência e doenças graves, independentemente da causa.
No entanto, essa atenção médica era um privilégio, disponível apenas para guerreiros e suas famílias, sacerdotes e membros da nobreza (SILVA, 1987, p. 79).
Afrescos, papiros, túmulos, múmias e a arte egípcia em geral mostram que algumas pessoas com deficiência conseguiam viver de forma próxima aquilo que a sociedade considera "normal", inclusive constituindo família. Estudos indicam que a deficiência estava presente em todas as camadas da sociedade, desde faraós até escravos.
Comentário da autora
No Egito Antigo, é possível notar que em determinado momento, pessoas com deficiência começaram a sobreviver. Essa sobrevivência estava ligada ao contexto social, assim como a de mulheres, crianças e idosos. Guerreiros, sacerdotes e membros da nobreza não apenas sobreviviam, mas viviam plenamente dentro das possibilidades de seu tempo. O critério para isso era a vontade da sociedade.
Hebreus
Vamos agora falar das crenças dos antigos hebreus sobre a deficiência:
De acordo com Silva (1987, p. 82), eles associavam deficiências e doenças crônicas ao pecado e à impureza do espírito.
Rosa (2007, p. 11) destaca uma passagem do livro de Levítico, que faz parte do Pentateuco bíblico:
Fale a Arão, dizendo: Nenhum dos seus descendentes, nas suas gerações, em quem houver algum defeito, se aproximará para oferecer o pão do seu Deus. Pois nenhum homem em quem houver defeito se aproximará: seja um homem cego, coxo, de rosto mutilado ou desproporcionado, homem que tiver o pé quebrado ou mão quebrada, que for corcunda, anão, que tiver defeito nos olhos, sarna, feridas na pele, ou que tiver testículo esmagado. Nenhum homem da descendência de Arão, o sacerdote, em quem houver algum defeito, se aproximará para oferecer as ofertas queimadas do Senhor; ele tem defeito; não se aproximará para oferecer o pão do seu Deus. Poderá comer o pão do seu Deus, tanto do santíssimo como do santo. Porém não poderá entrar até o véu, nem se aproximará do altar, porque tem defeito, para que não profane os meus santuários, porque eu sou o Senhor, que os santifico (Bíblia, Levítico 21: 17 - 23).
De acordo com a autora, essa passagem mostra que a aparência física era o principal motivo para a segregação de pessoas com deficiência. É importante destacar que essa é uma visão histórica do texto bíblico. Existem muitas interpretações religiosas sobre a deficiência na Bíblia, mas, para focar na laicidade e historicidade do debate, a perspectiva teológica não foi considerada aqui.
Na época, associava-se a deficiência a pecados ou crimes cometidos pela pessoa ou até por seus pais, vendo a deficiência como uma consequência direta dessas ações. No Novo Testamento, na epístola de João, há um trecho que sugere que essa ideia estava presente na sociedade, independentemente de quem escreveu o texto.
E, passando Jesus, viu um homem cego de nascença. E os seus discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem ele pecou nem seus pais, mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus (Bíblia, João 9: 1 - 3).
Até aqui, é possível perceber que as sociedades lidam de diferentes maneiras com os corpos, sejam eles com deficiências ou não.
Os padrões estabelecidos por cada sociedade moldam a história corporal e determinam o significado das características físicas em cada cultura (ROSÁRIO, 2006).
Com isso em mente, a seguir será abordada a perspectiva grega sobre corpo, beleza e deficiência.
Grécia Antiga
Para os gregos, o corpo ideal era aquele apto para o combate. Saúde e força eram valorizadas porque eram necessárias para a luta e a conquista de territórios. Esse era o corpo considerado belo. Todas as pessoas que não se encaixavam nesse ideal eram marginalizadas, negligenciadas ou abandonadas para morrer (BARBOSA, MATOS, COSTA, 2011, p. 25).
Devido às guerras, acidentes de trabalho e outros fatores, cidadãos gregos se tornavam pessoas com deficiência, tornando impossível o sustento próprio. Nesse contexto, os gregos implementaram um sistema de assistência, inicialmente para aqueles que adquiriram deficiência na guerra, e posteriormente estendido a outras pessoas.
A Grécia foi a primeira civilização a implementar movimentos de assistência, não apenas médica, para a população civil com deficiência. No entanto, esses cuidados eram restritos àqueles considerados cidadãos.
Segundo Cruz (2018), a cidadania na Grécia Antiga era restrita aos homens livres nascidos na cidade, excluindo mulheres, crianças, escravos e estrangeiros.
A cidadania era essencial para exercer direitos políticos e econômicos, além de representar pertencimento e identidade comunitária.
Em outras palavras, todas as pessoas que não fossem homens adultos, livres e nascidos na cidade-estado não eram consideradas cidadãs e, portanto, não tinham acesso à assistência médica para pessoas com deficiência. As crianças nascidas com deficiência eram julgadas pelo pai ou por uma comissão oficial de anciãos e frequentemente sacrificadas (SILVA, 1987, p. 103).
Esse sacrifício buscava corpos perfeitos, pois o corpo ideal na Grécia Antiga combinava beleza e força, com proporções harmoniosas e músculos bem definidos, como representado em atletas e deuses nas obras de arte da época (COUTO, 2016, p. 149).
Em Esparta, abandonar crianças com deficiência em abismos, cavernas e florestas foi uma prática comum por muitos séculos (PESSOTTI, 1984, p. 3).
Aristóteles, em sua obra A Política, Livro VII, Capítulo XIV, 1335 b, afirma o seguinte:
Quanto a rejeitar ou criar os recém-nascidos, deve haver uma lei que proíba criar qualquer criança com deformidades. Para evitar o excesso de crianças, se os costumes das cidades impedirem o abandono de recém-nascidos, deve haver uma lei limitando a procriação. Se alguém tiver um filho contrariando essa lei, o aborto deve ser provocado antes que o feto comece a sentir e viver (ARISTÓTELES, A Política, Livro VII, Capítulo XIV, 1335 b apud GUGEL, 2007, p. 63).
Roma Antiga
Em Roma, os aspectos culturais não eram muito diferentes. Bebês com deficiência congênita eram vistos como "inúteis" e não tinham direito à vida. O infanticídio era legalmente permitido em casos de deficiência, mas a execução era responsabilidade do pai. Muitos pais não conseguiam matar seus filhos, por isso, era comum abandonar essas crianças às margens do rio Tibre.
Então, no império romano aconteceu algo que teve impacto direto na história, a adesão ao cristianismo.
A conversão do Império Romano ao cristianismo foi um processo complexo e gradual que se estendeu por séculos. Embora a conversão do imperador Constantino no século IV tenha sido um marco importante, a adesão do Império ao cristianismo envolveu mudanças políticas, sociais e religiosas que transformaram a sociedade romana. A Igreja cristã se tornou uma instituição poderosa e influente, ajudando a moldar a política, a moral e a cultura do Império (MacMullen, 1984).
A mudança para o cristianismo não aconteceu de uma vez e encontrou resistência de grupos pagãos e de outras formas de cristianismo. A nova religião foi se firmando aos poucos, com a conversão dos líderes e a aceitação dos cidadãos romanos (Chadwick, 1968).
Quando o Cristianismo se tornou mais popular, as pessoas com deficiência começaram a ser vistas como “criaturas de Deus” e foram reconhecidas como tendo espírito. Em vez de serem condenadas à morte ou ao abandono, passaram a ser vistas como seres humanos dignos de "cuidado" e "caridade".
Com o tempo, a igreja cristã passou a se envolver com a assistência a pessoas com deficiência, criando instituições de "caridade" e hospitais. Por exemplo, o "Hospital de Santa Sofia" em Constantinopla, fundado no século IV, que tinha uma ala para atender pessoas com deficiência.
Comentário da autora
É importante perceber que até aqui as civilizações variam muito, no Egito algumas pessoas com deficiência poderiam viver, na Grécia alguns homens que se tornavam pessoas com deficiências poderiam viver. Algumas sociedades não sacrificavam essas pessoas, mas também não ajudavam na sua sobrevivência.
Em Roma, pela primeira vez, se tem um registro da existência de debates sobre a possibilidade de bebês que nasciam com deficiência possuírem alma e serem humanos, o que levou ao debate sobre a possibilidade desses bebês terem direito à vida. A deficiência adquirida ao longo da vida era, em muitos contextos, tolerada, mas o extermínio de bebês com deficiência era quase uma obrigação moral, pois acreditava-se que esses bebês não tinham espírito humano.
A partir desse momento, o direito de existência de bebês com deficiência começou a ser debatido. Para muitas pessoas pode não parecer, mas esse é um grande avanço na história da pessoa com deficiência que como vamos observar, é repleta de avanços seguidos de retrocessos.
A transição para a ética cristã trouxe consigo repressão sobre antigas práticas de abandono e assacinato de crianças com deficiência, surge a partir de então a necessidade de cuidado através da caridade. Tendo a caridade como mediadora, a rejeição se transformou em assistencialismo.
Haviam vantagens nos asilos que proviam moradia e comida ao mesmo tempo em que escondiam e isolavam aqueles que eram considerados inúteis. (PESSOTTI, 1984, P. 7).
Com o passar do tempo, as pessoas com deficiência, que antes eram marginalizadas ou desprezadas pelo Estado e recentemente recebiam caridade cristã, passaram a ser cuidadas por uma entidade que combinava hospitais e santuários religiosos.
Avançando um pouco mais na história, houve o fim do Império Romano e a queda de Constantinopla, que por sua vez marca o início da Idade Média.
Idade Média
Entre os séculos V e XV, que chamamos de Idade Média, aconteceram várias coisas importantes. O sistema feudal se desenvolveu, surgiram os burgos, o uso do arado se espalhou, a agricultura cresceu e começou a estocagem de alimentos. Também surgiram a escolástica (um tipo de filosofia) e as primeiras universidades ocidentais.
A igreja tinha muito poder político e controlava o conhecimento, porque a educação acontecia principalmente nos monastérios ou era ensinada pelo clero (os religiosos). Nessa época, os ideais de educação da Grécia Antiga, como a paideia (a formação do cidadão), e suas produções filosóficas e artísticas foram influenciados pela cultura cristã. A educação intelectual era acessível apenas a uma pequena parte da população, formada por nobres e pessoas que queriam seguir carreira religiosa. Por isso, não há registros de preocupação com a educação das pessoas com deficiência.
No entanto, com a expansão do cristianismo, que acreditava em um Deus único, a igreja começou a ver as pessoas com deficiência como filhos de Deus, com alma e, portanto, merecedoras do direito à vida. Segundo Cambi (1999):
O advento do cristianismo operou uma profunda revolução cultural no mundo antigo, talvez a mais profunda que o mundo ocidental tenha conhecido na sua história. Uma revolução da mentalidade, antes mesmo que da cultura e das instituições sociais e, depois, políticas também vindo a modelar toda a visão da sociedade e os comportamentos coletivos [...] (CAMBI, 1999, p. 121).
Cambi identificou uma mudança importante na maneira de pensar das pessoas durante a Idade Média, que foi influenciada pelas transformações nas condições de vida. Embora essa mudança tenha tido um grande impacto na sociedade em geral, para as pessoas com deficiência, essa mudança trouxe apenas um alívio inicial. Isso aconteceu porque havia uma contradição dentro da própria religião.
A Igreja, através do Tribunal Eclesiástico (também conhecido como Inquisição), tinha o poder de julgar crimes contra a fé cristã. A Inquisição foi responsável pela morte de muitas pessoas, incluindo aquelas com deficiência, o que mostra a contradição entre a ideia de que todos eram filhos de Deus e o tratamento dado a essas pessoas pela própria Igreja. Veremos mais sobre isso a seguir.
Na Idade Média, a pesquisa científica sobre pessoas com deficiência era quase nula. Muitas pessoas da sociedade, que confundiam ciência com bruxaria por causa do fanatismo religioso, às vezes consideravam as pessoas com deficiência como bruxas ou “endemoniadas”. Segundo Pessotti (1984), o ser humano com deficiência no século V:
[...] era visto como portador de desígnios especiais de Deus ou como presa de entidades malignas às quais “obviamente” serviria através de atos bizarros como os das bruxas. Dada a credulidade da população rural e seu fanatismo clerical, não surpreende que entre as cem mil pessoas queimadas por bruxaria, só na Alemanha do século XVII, estivessem incluídas centenas de pessoas com deficiência intelectual e outras questões de saúde mental (PESSOTTI, 1984, p. 9).
Pessotti menciona que, mesmo no século XVII (ou seja, dois séculos após o fim consensual da Idade Média), a forma como as pessoas com deficiência intelectual eram tratadas permite uma hipótese de que pessoas com outras deficiências também enfrentavam um tratamento similar. Isso sugere que indivíduos com epilepsia, paralisia cerebral ou outras condições que fossem visivelmente diferentes também poderiam ser condenados à morte, pois na época, eventos que hoje consideramos comuns eram frequentemente vistos como manifestações demoníacas. Byington (1997), no prefácio da obra Malleus Malleficarum ou Martelo das Feiticeiras, afirma:
Uma pessoa de conduta diferente, uma briga entre vizinhos, uma vaca que dá mais ou menos leite, uma criança que adoece, uma tempestade ou a diminuição da potência sexual, qualquer ocorrência pode ser atribuída à bruxaria (Byington,1997, p. 20).
O texto discute a relação entre julgamentos de pessoas consideradas possuídas por demônios e a apropriação de seus bens. No século XIV, de acordo com Pollock e Maitland (1898), a lei De praerogativa regis permitia que terras herdadas ou rendas de pessoas consideradas “lunáticas” fossem mantidas por familiares ou tutores indicados pela coroa até que a pessoa recuperasse suas "faculdades mentais". No entanto, se a pessoa fosse considerada possuída ou algo semelhante, poderia ser executada pela Inquisição, transferindo suas posses para um familiar ou tutor.
Infelizmente, possuir bens era um risco para pessoas com deficiências, pois ser visto como possuído por demônios e ter deficiências frequentemente se tornava sinônimo para benefício de terceiros.
O feudalismo começou a perder força, a burguesia, que ganhava dinheiro com o comércio e as grandes navegações, começou a se destacar. Ao mesmo tempo, o poder da Igreja foi questionado, levando à divisão dela e ao surgimento do protestantismo e calvinismo.
Nesse período, começaram os primeiros estudos sobre pessoas com deficiência, feitos por Teofrasto Paracelso (1493 - 1541) e Jerônimo Cardano (1501 - 1576). Embora ainda tivessem muitas ideias místicas, esses estudos ajudaram a iniciar um pensamento mais científico, que mais tarde influenciaria o Renascimento e o Iluminismo.
Com a valorização do empirismo, que é a ideia de aprender através da experiência, começaram pesquisas sobre a capacidade das pessoas com deficiência de aprender. John Locke, considerado o pai do empirismo, publicou em 1689 o livro “Ensaio sobre o entendimento humano”, onde defendia que as experiências moldam o indivíduo, que nasce como uma “tábula rasa” (uma folha em branco).
Para Locke, o empirismo também era uma forma de se opor à teocracia dos reis. Ele afirmou: “Não se pode afirmar que qualquer proposição está na mente sem ser jamais conhecida e que jamais se tem disso consciência” (LOCKE, p.36, 1999).
Naquela época, o capitalismo mercantil precisava crescer e via as tradições do feudalismo como obstáculos. O pensamento de Locke inspirou Denis Diderot a escrever, em 1749, “Carta sobre os cegos para uso daqueles que enxergam”, destacando a capacidade dos cegos de aprender através das sensações. As obras de Locke e Diderot possivelmente influenciaram Valentin Hauy a fundar o Instituto Nacional dos Jovens Cegos em 1784, em Paris, um pioneiro na educação de pessoas com deficiência.
Renascimento
Entre os séculos XV e XVII com a queda do feudalismo iniciou-se um período histórico conhecido como Renascimento, ele foi marcado por mudanças econômicas, políticas e sociais que oportunizaram um cenário favorável para o desenvolvimento do sistema capitalista. Houve também a retomada do comércio, a substituição da mão-de-obra servil pelo trabalho assalariado, o declínio da influência do clero sobre o Estado e a ascensão da famosa burguesia.
O fervilhar desse caldeirão de mudanças acarretou uma luta de interesses no seio da sociedade, essa luta originou consequências nos valores, nas normas e nas leis elaboradas e aplicadas neste período. Durante o Renascimento, houve uma mudança de perspectiva, deixando de lado a visão teocêntrica (centrada em Deus) e passando a valorizar mais o ser humano e aspectos das culturas greco-romanas. Com isso, surgiram visões mais humanísticas sobre a deficiência.
As pessoas com deficiência começaram a ser vistas de forma mais natural, e as associações entre deficiência e “forças demoníacas” ou sobrenaturais foram gradualmente abandonadas (CARVALHO, 1997).
Apesar disso, o Renascimento não conseguiu eliminar todos os preconceitos e ideias de que pessoas com deficiência eram não-humanas, possuídas por maus espíritos ou influenciadas por bruxas (SILVA, 1987, p.230).
Martinho Lutero, conhecido por liderar a Reforma Protestante, ainda acreditava que pessoas com deficiência intelectual eram diabólicas e mereciam ser castigadas para se purificarem (BENCINI, 2001).
No entanto, houve resistência a essas ideias, como a do príncipe de Anhalt, na Alemanha do século XV, que publicamente desafiou Lutero, recusando-se a afogar crianças com deficiência intelectual.
Martinho Lutero também é conhecido por seu antissemitismo, em janeiro de 1543, ele escreveu um tratado intitulado “Sobre os Judeus e Suas Mentiras”, onde expressou suas opiniões negativas sobre os judeus.
Queime suas sinagogas. Negue a eles o que disse anteriormente. Force-os a trabalhar e trate-os com toda sorte de severidade… são inúteis, devemos tratá-los como cachorros loucos, para não sermos parceiros em suas blasfêmias e vícios, e para que não recebamos a ira de Deus sobre nós. Eu estou fazendo a minha parte (LUTERO, 1543).
Aviso importante
Este texto não tem nenhuma intenção de difamar Martinho Lutero, nem pretende associar suas ideias à Igreja Luterana ou a qualquer outra igreja surgida da reforma protestante. O objetivo é expor eventos e figuras históricas relevantes, cujos pensamentos sobre pessoas com deficiência tiveram impacto social em seu tempo. Não se admite que este artigo seja utilizado de forma discriminatória em relação a religiões.
Com o avanço das ciências e a interpretação humanista da deficiência, que a vê como parte do corpo e não como algo sobrenatural, a medicina começou a estudar as possíveis causas das deficiências. Nesse contexto, surgiu o que mais tarde seria conhecido como “modelo médico da deficiência”, que compara a deficiência a outras doenças que podem ser curadas. Ou seja, a deficiência passou a ser vista como uma doença que afeta o “bom funcionamento” do corpo, semelhante a uma máquina.
Esse modelo foi muito influenciado pelo mecanicismo, que estava em ascensão na época e que comparava o corpo humano a máquinas, com energia, peças e um padrão de funcionamento dividido em várias partes (BIANCHETTI, 2001).
Com o sucesso da Revolução Francesa, a burguesia assumiu a posição dominante nas classes sociais. Os valores de igualdade, liberdade e fraternidade foram amplamente promovidos, criando a ilusão de que todas as pessoas eram tratadas da mesma forma.
No entanto, as diferenças reais entre as pessoas não eram reconhecidas de fato (LOPES, 1981).
As noções de especificidades e equidade foram sufocadas por uma visão que acreditava que todas as pessoas tinham as mesmas oportunidades na sociedade, mas que aproveitavam essas oportunidades de maneiras diferentes, sendo assim responsáveis por seus próprios sucessos e fracassos (BOCK, 2002).
Sob a interpretação de que todo mundo têm oportunidades iguais, mas as aproveitam de maneiras diferentes, grupos como pessoas com deficiência, LGBT+, idosos e pessoas pretas gradualmente se tornaram parte dos excluídos na modernidade. É importante entender que a segregação não surge de repente; ela é resultado de um acúmulo de consequências históricas, econômicas e sociais. Essas consequências sustentaram e ainda sustentam a desigualdade, baseadas em crenças hierárquicas que defendem a “superioridade” de certos grupos, considerando-os mais “capazes” e habilidosos.
Em contraste, outros grupos são vistos como menos aptos desde o nascimento, ignorando as disparidades na propriedade privada de bens e serviços, bem como os privilégios sociais e políticos (SACRISTÁN, 2001, p. 63).
A Revolução Industrial trouxe a substituição do trabalho manual pelo trabalho com máquinas. Frederick Taylor e Henry Ford foram importantes na criação da produção em série, separando o trabalho manual do intelectual. Nas primeiras fábricas, as condições de trabalho eram precárias, resultando em muitos acidentes que causavam mutilações e outras deficiências adquiridas. Na sociedade moderna, o corpo começou a ser visto pelo que podia produzir. A deficiência passou a ser vista como sinônimo de improdutividade.
ser deficiente significa, pois, ser não eficiente, não produtivo e não adequado aos fins maiores (SANT’ANA apud MARQUES, 1998).
Comentário da autora
É importante para nós, pessoas com deficiência, entendermos que, nesse período, houve uma ruptura na sociedade em geral com a ideia de que as deficiências são consequências de bruxarias, pecados ou possessões demoníacas. Claro que essas ideias ainda existem hoje, mas estão restritas a algumas manifestações e crenças religiosas; antes, eram crenças comuns em toda a sociedade. Outro ponto importante é que o entendimento da deficiência como uma condição do corpo trouxe as primeiras interpretações médicas, resultando no modelo médico da deficiência que existe até hoje. Por último, e não menos relevante, destaca-se a influência da ideia de corpo baseado nas suas supostas possibilidades de produzir, o que associa a deficiência com a incapacidade e a improdutividade.
Segunda Guerra Mundial
A Segunda Guerra Mundial, apesar de parecer um evento distante, terminou em 1945, ou seja, não tem nem 100 anos. O tempo de término da guerra ainda cabe dentro de uma vida humana. Um exemplo disso é a Rainha Elizabeth II da Inglaterra. Quando a guerra começou, ela tinha 14 anos. Mais tarde, como rainha, ela esteve presente no funeral de Winston Churchill, o primeiro-ministro britânico que liderou o Reino Unido durante a guerra.
No Brasil, Elizabeth II era carinhosamente chamada de Betinha e se tornou protagonista de vários memes, incluindo um famoso que sugeria que seu primeiro animal de estimação foi um dinossauro. Isso é relevante porque muitas pessoas a veem apenas como alguém muito idoso, esquecendo que ela testemunhou inúmeras mudanças significativas.
Elizabeth II viu o desenvolvimento da aviação militar e comercial, o nascimento do primeiro computador, a criação da internet e o surgimento de redes sociais como Facebook e Instagram. Essas transformações tecnológicas, aceleradas pela guerra, fazem com que ela pareça ter vivido por um período excepcionalmente longo, mas na verdade, foi o ritmo das mudanças tecnológicas que foi extraordinário.
Estudar a Segunda Guerra Mundial nas escolas pode dar a impressão de que o conflito é tão distante quanto a Idade Média ou as civilizações greco-romanas. No entanto, historicamente, a guerra aconteceu “ontem”, e ainda estamos colhendo os frutos das revoluções tecnológicas e lidando com os aspectos negativos resultantes dela. Para as pessoas com deficiência, por exemplo, esse período trouxe avanços e retrocessos que ainda são sentidos hoje e precisam ser compreendidos no contexto correto.
Após a derrota na Primeira Guerra Mundial em 1918 para a França, Itália, Reino Unido e Estados Unidos, a Alemanha estava devastada e seu exército se sentia humilhado. Em 1919, acordos resultaram na criação de novos países como Tchecoslováquia, Áustria, Hungria e Polônia. A Alemanha perdeu parte de seu território para a Tchecoslováquia e teve que lidar com as duras consequências do Tratado de Versalhes, que a considerava a principal responsável pela guerra.
Nesse cenário, Adolf Hitler entrou na política em 1919, movido pelo sentimento de derrota e ódio pela rendição alemã.
Ele acreditava que a propaganda inimiga era a causa do derrotismo que enfraquecia a Alemanha (EVANS, 2010, p. 222).
Percebendo o caos ao seu redor, Hitler entendeu que a propaganda tinha grande poder e deveria ser direcionada às massas.
Toda propaganda deve ser popular e estabelecer seu nível espiritual de acordo com a capacidade de compreensão do mais ignorante dentre aqueles a quem ela pretende se dirigir. Assim sua elevação espiritual deverá ser mantida tanto mais baixa quanto maior for a massa humana que ela deverá abranger. [...] A arte da propaganda reside justamente na compreensão da mentalidade e dos sentimentos da massa. [...] A capacidade de compreensão do povo é muito limitada, mas em compensação, a capacidade de esquecer é grande. Assim sendo, a propaganda deve-se restringir a poucos pontos. E esses deverão ser valorizados como estribilhos, até que o último indivíduo consiga saber exatamente o que representa esse estribilho (HITLER, 2001, p. 135).
Em resumo, a citação sugere que a propaganda deve ser desenhada para ser acessível e memorável para o público mais amplo possível. A simplicidade e a repetição são ferramentas-chave nesse processo, garantindo que a mensagem seja absorvida e internalizada pela massa, independentemente de seu nível de instrução. Essa técnica, embora eficaz, também expõe as táticas manipulativas empregadas para influenciar e controlar a opinião pública.
É de conhecimento geral que Hitler chegou ao poder na Alemanha, assim como Mussolini na Itália, levando ao auge do nazi-fascismo. Em “A anatomia do fascismo”, Paxton descreve em detalhes como o fascismo se estabelece, e podemos aplicar essas observações também ao nazismo.
Outro problema das imagens convencionais do fascismo é que elas enfocam os momentos mais dramáticos do seu itinerário e omitem a textura sólida da experiência cotidiana, e também a cumplicidade das pessoas comuns no estabelecimento e no funcionamento dos regimes fascistas. Eles jamais teriam crescido sem a ajuda das pessoas comuns, mesmo das pessoas convencionalmente boas. Jamais teriam chegado ao poder sem a aquiescência, ou mesmo a concordância ativa das elites tradicionais – chefes de Estado, líderes partidários, altos funcionários do governo – muitos dos quais sentiam uma aversão enfastiada pela crueza dos militantes fascistas. Os excessos do fascismo no poder exigiam também uma ampla cumplicidade entre os membros do establishment: magistrados, policiais, oficiais do exército e homens de negócios. Para entender plenamente como funcionavam esses regimes, temos que descer ao nível das pessoas comuns e examinar as escolhas corriqueiras feitas por eles em sua rotina diária. Fazer essas escolhas significava aceitar o que parecia ser um mal menor, ou desviar o olhar de alguns excessos que, a curto prazo, não pareciam tão nocivos, e que, isoladamente, podiam ser vistos até mesmo como aceitáveis, mas que, cumulativamente, acabaram por se somar em monstruosos resultados finais (PAXTON, 2007, p. 34).
A citação enfatiza a importância de reconhecer a responsabilidade coletiva e a participação generalizada na manutenção dos regimes fascistas (e nazistas), indo além da visão simplista de que apenas os líderes carismáticos e os militantes fanáticos foram responsáveis pelo surgimento e consolidação do fascismo (e nazismo).
Ao destacar esses pontos, a citação convida à reflexão sobre como regimes autoritários se estabelecem e persistem não apenas através de ações extremas e figuras carismáticas, mas também através da aceitação e participação de uma ampla gama de indivíduos e grupos sociais. Compreender essa dinâmica é crucial para evitar a repetição dos erros do passado e para promover uma vigilância constante contra a ascensão de regimes semelhantes no futuro.
A chegada de Hitler ao poder na Alemanha não foi um acidente na história, nem ele deve ser visto como uma "encarnação do demônio" ou como uma figura sobrenatural. Hitler era um homem cuja habilidade em usar retórica e propaganda, combinada com as condições específicas da época, permitiu sua ascensão ao poder. Segundo Kershaw (2010):
[...] O impacto da guerra, da revolução e da humilhação nacional sobre o povo alemão, e o medo agudo do bolchevismo compartilhado por amplos setores da população deram a Hitler sua plataforma. Ele explorou as condições brilhantemente. Mais do que qualquer outro político de sua época, ele foi o porta-voz dos temores, ressentimentos e preconceitos intensos da gente comum não atraída pelos partidos de esquerda ou ligada aos partidos políticos ortodoxos, e ofereceu a essas pessoas a perspectiva de uma sociedade nova, melhor, e que parecia se basear em “verdadeiros” valores alemães com os quais podiam se identificar. A visão do futuro ia de mãos dadas com a denúncia do passado na atração que Hitler exercia. O colapso total da confiança num sistema estatal baseado numa política partidária e numa administração burocrática desacreditada levou mais de um terço da população a depositar sua confiança e suas esperanças na política da redenção nacional. O culto da personalidade cuidadosamente alimentado em torno de Hitler transformou-o na encarnação dessas esperanças (KERSHAW, 2010, p. 290).
Hitler representava os medos e preconceitos de sua sociedade e soube usar isso para ajudar os nazistas a chegarem ao poder. Antissemitismo, fascismo, xenofobia e outros preconceitos desse período são heranças negativas que as sociedades ainda enfrentam hoje. Neste trabalho, vamos focar em uma discriminação específica: a Eugenia. Apesar do termo "Eugenia" ter sido criado no século XIX por Francis Galton, a humanidade já agia de acordo com seus princípios muito antes disso. Segundo as palavras do próprio Galton:
A eugenia pode ser definida como a ciência que trata daquelas agências sociais que influenciam, mental ou fisicamente, as qualidades raciais das futuras gerações (GALTON, 1906, p. 3, nota).
Em outras palavras, Galton acreditava que todas as características, habilidades e comportamentos de uma pessoa eram determinados exclusivamente por sua identidade étnico-racial e eram transmitidos de forma imutável de geração em geração. Ele acreditava nisso porque era primo de Charles Darwin, autor de "A origem das espécies" e criador da Teoria da Evolução.
Galton aplicou esses princípios aos seres humanos e à sociedade, criando o conceito de eugenia, que significa "bem-nascido". Esse conceito mais tarde ficou conhecido como darwinismo social. Na época, Galton foi muito aplaudido e suas ideias foram bem aceitas pela comunidade científica.
Para definir uma raça, os darwinistas sociais criaram estereótipos, positivos e negativos, sobre a aparência, o comportamento e a cultura de diferentes grupos étnicos, os quais seriam supostamente inalteráveis e baseados em uma herança biológica que não poderia ser modificada, seja ao longo do tempo ou por diferenças de ambiente, intelecto, desenvolvimento ou socialização (UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM, s.d.).
Dessa perspectiva, a história da humanidade seria uma "seleção natural das raças", onde apenas os mais fortes sobreviveriam. Segundo essa ideia, haveria uma escala evolutiva em que os brancos seriam considerados "superiores". Para Hitler e os nazistas, entre os "superiores", os alemães e outros povos germânicos do norte da Europa eram vistos como "os superiores dos superiores", os mais "puros". Os nazistas acreditavam que a "raça superior" poderia se degenerar com a miscigenação, mas também poderia se tornar "cada vez mais pura" se apenas tivessem filhos entre si e impedissem os considerados "inferiores" de ter descendentes por meio da esterilização.
[...] com o apoio dos cientistas alemães que acreditavam que a raça humana poderia ser aperfeiçoada através do impedimento da reprodução de indivíduos por eles considerados “inferiores”. A partir de 1933, médicos alemães foram autorizados a realizar esterilizações forçadas, operações que impossibilitavam a procriação das vítimas (UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM, s.d.).
Estima-se que 400 mil pessoas suspeitas de ter genes para cegueira, surdez e deficiência intelectual foram esterilizadas durante esse período (AUGUSTIN, 2012).
Foi criada uma política que estabelecia uma hierarquia de pessoas, classificando-as de "superiores" a "inúteis". Isso afetou judeus, afro-alemães, ciganos, testemunhas de Jeová, comunistas, pessoas com deficiência, homossexuais, alcoólatras, moradores de rua e mulheres consideradas promíscuas. Hitler considerava as pessoas com deficiência como "atrasos" em seu projeto de sociedade. Então, surgiu o projeto Aktion T4, erroneamente chamado de "Eutanásia", que de "morte tranquila" não tinha nada.
Além disso, não havia a intenção de aliviar o sofrimento de uma pessoa consciente de sua condição de saúde (GOLDIM, 1998).
Começando em 1939, esse projeto tinha como objetivo matar em grande escala idosos, pessoas com deficiência e bebês. Uma equipe médica avaliava essas pessoas e, se considerassem que eram "fracas" (segundo a lógica deles), recebiam doses letais de drogas ou eram abandonadas. Para os nazistas, essas eram "vidas que não mereciam ser vividas".
Esse pensamento levou o infame programa a se expandir para outras áreas da sociedade (GOLDIM, 1998).
Para as famílias, era dito que seus parentes estavam indo para um centro de reabilitação, com promessas de retorno e cura. No entanto, em um segundo momento, as famílias recebiam notícias das mortes acompanhadas de falsas explicações. O extermínio de pessoas com deficiência era realizado em campos de concentração disfarçados de clínicas psiquiátricas, exceto os bebês, que eram mortos nos próprios hospitais onde nasciam. Roney Cytrynowicz (1995, p. 217) destaca que:
[...] Eu gostaria de fazer um parêntesis e lembrar que, a rigor, a primeira câmara de gás foi utilizada contra pacientes de um hospital psiquiátrico no programa nazista chamado de “eutanásia”, que matou cerca de 100 mil alemães considerados “doentes mentais e incuráveis”, entre eles epiléticos, surdos, cegos, pessoas com lábio leporino, às vezes também pessoas consideradas “associais” e judeus. A eutanásia foi oficialmente suspensa devido a protestos de setores da igreja, pressões que não ocorreram depois contra o extermínio dos judeus (CYTRYNOWICZ, 1995, p. 217).
A citação é significativa porque evidencia a continuidade e a escalada da violência nazista, iniciando com grupos considerados vulneráveis e marginalizados, como os pacientes psiquiátricos, antes de se expandir para o extermínio sistemático de judeus e outros grupos. A referência ao uso inicial das câmaras de gás contra pacientes psiquiátricos destaca como o regime nazista testou e aperfeiçoou suas técnicas de assassinato em massa em populações que consideravam menos valiosas, desumanizando-as completamente. Além disso, a citação enfatiza a falta de uma resposta igualmente forte da sociedade e da igreja contra o Holocausto, sugerindo uma diferenciação perturbadora na reação pública e institucional a diferentes grupos de vítimas.
Em resumo, a citação revela não apenas a brutalidade e a eficiência crescente do regime nazista em seus métodos de extermínio, mas também a complexidade das reações sociais e institucionais às suas atrocidades. Essa análise ressalta a importância de compreender as fases iniciais da violência nazista para reconhecer os padrões de desumanização e extermínio que se expandiram e intensificaram ao longo do tempo, culminando no Holocausto.
Além dos extermínios, os campos de concentração nazistas também realizaram experiências médicas. No caso das pessoas com deficiência, essas experiências visavam entender as causas dessas condições para tentar evitá-las na chamada "raça ariana". Para que o projeto Eutanásia tivesse sucesso, os médicos analisavam fichas e classificavam as deficiências. Com base nesses diagnósticos, as pessoas eram presas. O programa gerou protestos, por isso o sigilo foi crucial para sua continuidade. Oficialmente, ele foi encerrado em 24 de agosto de 1941, mas, secretamente, continuou ativo.
Estima-se que tenha matado cerca de 200.000 pessoas com deficiência até 1945, embora não se possa calcular um número exato (GOLDIM, 1998; UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM, s.d).
Com a perspectiva de hoje, parece óbvio que o conceito de "raça superior" não existe e não justifica experimentos desumanos, perseguições e a morte de aproximadamente 6 milhões de pessoas. É fácil olhar para o passado e pensar que toda uma nação era ingênua ou ignorante a ponto de permitir que isso acontecesse. No entanto, havia um mecanismo por trás da ascensão nazifascista.
Tudo começa com a insatisfação popular e um forte desejo de mudança. Em uma sociedade cheia de problemas e inseguranças, surge alguém que não apenas apresenta a solução perfeita, mas também aponta e culpa certos grupos pela situação.
O líder carismático espalha sua mensagem, fazendo o público se identificar com ele, e destaca como a nação é forte e precisa se unir. Ele transforma as opiniões pouco a pouco, até que os ideais absurdos pareçam normais. Por isso, muitos alemães aderiram à ideologia nazista, não de forma clara e direta, mas foram atraídos pela propaganda e pela comunicação persuasiva e ameaçadora.
Identificar um inimigo comum foi crucial para focar o ódio da população. Ser contra o regime nazista significava ser inimigo do povo e do país, trazendo consequências terríveis para a pessoa e para seus familiares e amigos.
O nazifascismo aconteceu dessa maneira. Foi assim que Hitler agiu: ele fez a população acreditar que, para a Alemanha se reerguer, era necessário exterminar os "inimigos", as "raças impuras" como judeus, pessoas pretas, pessoas com deficiência, a comunidade LGBT+ e outros. Não é correto pensar que tudo isso passou e não trouxe consequências, boas ou ruins, elas existem até hoje, pois a Segunda Guerra Mundial ainda repercute. Suas causas e sobretudo as suas vítimas não podem ser esquecidas.
Pós-guerra
O fim da guerra trouxe muitas mudanças importantes. Para entender todas elas, seria necessário escrever um artigo completo. Mas, podemos destacar que houve uma nova organização socioeconômica. Muitos impérios europeus caíram, enquanto a União Soviética e os Estados Unidos se tornaram as novas superpotências mundiais, levando ao que conhecemos como Guerra Fria. Em 24 de outubro de 1945, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU), que teve grande relevância na história das pessoas com deficiência.
Nos países europeus, foi criado o Estado de Bem-Estar Social, que passou a se preocupar em oferecer assistência à população em geral. Pela primeira vez, houve uma preocupação ampla com as pessoas com deficiência. Isso aconteceu devido ao aumento significativo da população com deficiência após a guerra. Essa questão ganhou importância política, tanto dentro dos países quanto internacionalmente, envolvendo a recém-criada ONU.
Comentário da autora
Não sejamos ingênuos. Após a guerra, os países estavam devastados: seus territórios, economias e populações foram profundamente afetados. Em meio a esse caos, era politicamente inviável deixar os sobreviventes sem assistência. Imagine lutar pelo seu país, sobreviver, adquirir uma deficiência e ser abandonado pelo governo. A preocupação mundial com as pessoas com deficiência era uma resposta dos Estados a uma questão que não poderia ser ignorada sem causar indignação.
Os heróis de guerra e suas famílias não podiam ser deixados à própria sorte. O número de pessoas com deficiência era tão grande que se tornou vergonhoso ignorar. O diálogo social sobre deficiência, assistência, qualidade de vida, reabilitação e trabalho foi uma conquista necessária não foi um ato de caridade.
Diante deste cenário políticas e programas de assistência foram desenvolvidos tendo em vista amparar crianças carentes e órfãs, idosos, pessoas com deficiência, em especial às vítimas da guerra e pessoas em situação de pobreza. Em 09 de dezembro de 1975 a ONU aprova a “Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência” comprometendo-se em seu art. 3º a assegurar para esta população os direitos referentes à igualdade humana.
O International Year of Disabled Persons (Ano Internacional das Pessoas com Deficiência) foi proclamado pelas Nações Unidas em 1981 (COSTA, 2008, p. 25; FIGUEIRA, 2008, p. 117).
Comentário da autora
Para comparar, imagine que alguém nascido em 1981 ainda não ten nem 50 anos. Em 1981, a ONU reconheceu que as pessoas com deficiência são iguais a todas as outras. Isso aconteceu recentemente na história da humanidade, ainda cabe no tempo de uma vida humana e poucas pessoas refletem sobre isso. Uma organização internacional teve que declarar publicamente que a deficiência não torna alguém menos humano e que essas pessoas também têm direitos humanos.
Isso mostra o quanto a sociedade desumaniza alguém por causa de sua deficiência, a ponto de isso ter sido discutido em uma organização internacional em um período específico. Não devemos ver esses fatos apenas com os olhos de hoje. Entender esses significados ajuda a compreender a história da deficiência e a evitar que essas ideias erradas voltem à sociedade, pois elas não desaparecem facilmente e precisam ser combatidas constantemente.
A Organização das Nações Unidas (ONU) criou, em 3 de dezembro de 1982, o Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência, pela resolução nº 37/52.
O principal objetivo era defender a igualdade de oportunidades e garantir o acesso à moradia, transporte, cultura, saúde, assistência social, lazer, educação e trabalho (COSTA, 2008, p. 26).
Em 1992, a ONU estabeleceu o dia 3 de dezembro como o Dia Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência.
Em 10 de junho de 1994, ocorreu na Espanha um evento que seria um marco importante na história dos direitos civis das pessoas com deficiência. Nesse dia, a assembleia adotou uma resolução da ONU que estabelecia procedimentos para promover a igualdade de oportunidades para pessoas com deficiência, com destaque para a educação.
Esse documento, conhecido como “A Declaração de Salamanca”, é um dos mais importantes do mundo na perspectiva da inclusão social das pessoas com deficiência (COSTA, 2008, p. 26).
No ano 2000, o Conselho da União Europeia proibiu por unanimidade a discriminação explícita no emprego e na capacitação profissional de pessoas com deficiência. Também proibiu assédios por causa da deficiência e prevê adaptações legais para promover o acesso dessas pessoas. Hoje, a maioria dos países da União Europeia, Estados Unidos, Canadá, Japão e países da América Latina como o Brasil, além de outros Estados ao redor do mundo, têm algum tipo de legislação sobre pessoas com deficiência, acessibilidade e discriminação devido a necessidades específicas.
Comentário da autora
Onde estamos na história? Estamos em um ponto onde as pessoas com deficiência foram finalmente reconhecidas como pessoas, e seu acesso aos direitos descritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos foi recentemente discutido. Aspectos básicos para a qualidade de vida, como saúde, educação e trabalho, tiveram avanços significativos a partir dos anos 2000, no contexto das pessoas com deficiência. No “relógio da história”, isso é extremamente recente.
Por isso, conquistamos direitos legais, mas ainda estamos no começo da luta por sua aplicação real na sociedade. A deficiência busca espaço para ser debatida até mesmo entre os movimentos sociais, pois pessoas historicamente discriminadas também são preconceituosas com relação à deficiência. O preconceito, a desumanização e a segregação de pessoas com deficiência unem todas as outras formas de discriminação baseadas no corpo.
As mudanças recentes nos paradigmas sobre a população com deficiência não aconteceram por acaso. Elas são resultado da organização de grupos que lutam pelos direitos das pessoas com deficiência. Essa é uma luta social e politicamente organizada, por isso ganhou força e adesão. A inclusão não é um esforço individual, mas um fenômeno social, político, econômico e cultural.
Assim, a pessoa com deficiência pode ser vista e se ver de forma menos extremista: nem herói, nem vítima, nem deus, nem demônio, nem melhor, nem pior, nem super-homem, nem animal. Apenas pessoa (AMARAL 1994, apud DENARI, 1998).
A população com deficiência no Brasil
Como aconteceu em todas as civilizações, no Brasil a história da pessoa com deficiência passa, inicialmente, pelo assassinato, pela morte por falta de assistência, posteriormente pela marginalização e exclusão social, sempre perpassada pelos rótulos de “incapacidade” e “abominação” completa. Assim como na Europa, no Brasil os registros históricos sobre pessoas com deficiência estão contidos em comentários feitos sobre a miséria e doenças existentes entre aqueles que viviam na pobreza extrema.
Silva através da sua publicação "Epopeia Ignorada” de 1987 e Emílio Figueira com sua obra “Caminhando no silêncio: uma introdução à trajetória da pessoa com deficiência na história do Brasil” de 2008 demonstram também que pessoas com deficiência, pertencentes a elite financeira, viviam segregados a margem da sociedade e da política em suas residências, ainda que fossem ricas não possuíam influência.
Emílio Figueira em sua obra de 2008 descreve ações cotidianas das culturas de alguns povos indígenas que habitavam no século XIV o território hoje chamado de Brasil, a história demonstra que existiam infanticídios de crianças com deficiência. Essas práticas de eliminação abrangiam desde crianças que nasciam com deficiência até aquelas que adquirissem, a morte por arremesso em montanhas e o abandono na floresta também eram comuns. Com relação à população africana escravizada no Brasil, documentos oficiais do século XVIII escancaram os maus tratos, a violência e a crueldade dos senhores de engenho e donos de fazendas de café através de seus castigos físicos.
O rei D. João V em 03 de março de 1741 assinou um alvará que detalhou as torturas sofridas por escravos fugitivos que fossem capturados, com total anuência da igreja. Dentre as punições descritas estavam a amputação de membros, dedos, seios, extração dos olhos, mutilações da face, castração e açoites, isso esteve vigente até o século XIX, de forma oficializada e vista como boa-conduta pela elite da sociedade. As engrenagens das casas de moinho também mutilavam mãos e braços de escravos em incontáveis acidentes de trabalho, cegueira também era bastante comum (LOBO, 2008, p. 179).
Os estudos históricos demonstram também que no século XIX conflitos militares, a exemplo da Setembrada e Novembrada (Pernambuco 1831), Revolta dos Malês (Bahia 1835), Guerra dos Farrapos (Rio Grande do Sul 1835 - 1845) e a Balaiada (Maranhão 1850) elevaram o número de pessoas com deficiência, como consequência dos conflitos.
A preocupação com a educação das pessoas com deficiência começou oficialmente em 1854, quando o imperador Dom Pedro II, através do decreto 1428, criou o Imperial Instituto de Meninos Cegos, hoje chamado Instituto Benjamin Constant (IBC). A ideia foi do professor José Alvares de Azevedo, que era cego e estudou no Instituto de Meninos Cegos de Paris.
Ao voltar ao Brasil em 1850, Alvares de Azevedo começou a ensinar Braille para uma menina cega chamada Adélia Sigaud, filha do médico da corte Dr. Francisco Xavier Sigaud. O sucesso de Adélia com o Braille animou seu pai, que conseguiu uma audiência do professor com o imperador, resultando na criação do instituto anos depois.
Em 1857, através da Lei 939 e dos esforços do professor francês surdo Edgar Houet, foi criado o Instituto de Surdos-Mudos, agora conhecido como Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). Esses dois institutos foram as primeiras iniciativas para a educação de pessoas com deficiência no Brasil e se tornaram centros de referência em toda a América Latina.
Antes deles, as pessoas com deficiência só recebiam cuidados médicos ou caritativos em asilos, sem interesse educativo. Assim, mesmo atendendo poucas dezenas de estudantes nos primeiros anos, o IBC e o INES foram fundamentais para a criação de outras instituições em um país onde a educação ainda era muito limitada.
Como destaca Jannuzzi (2006): A educação popular, e muito menos a dos deficientes, não era motivo de preocupação. Na sociedade ainda pouco urbanizada, apoiada no setor rural, primitivamente aparelhado, provavelmente poucos eram considerados deficientes; havia lugar, havia alguma tarefa que muitos deles executassem. A população era iletrada na sua maior parte, as escolas eram escassas, como já salientado, e dado que só recorriam a ela as camadas sociais alta e média, a escola não funcionou pelo crivo, como elemento de patenteação de deficiências (Jannuzzi, 2006, p. 16).
A educação formal ou escolar era quase inexistente naquela época, disponível apenas para uma pequena parte da população. A maioria das pessoas aprendia com a família e através do trabalho diário.
Quando foram criados, o IBC e o INES, apesar de serem pioneiros na educação de pessoas com deficiência, tinham em sua estrutura didática um foco forte em práticas manuais como encadernação, conserto de pianos e confecção de vassouras (Moises, 2019).
Isso mostrava a necessidade de tornar as pessoas com deficiência capazes de serem produtivas e sustentáveis no capitalismo que surgia.
Em 1888, a escravidão foi abolida, e no ano seguinte, em 15 de novembro de 1889, foi proclamada a república e, em 1891, promulgada a nova constituição. O fim da escravidão trouxe a necessidade de outros trabalhadores que agora precisavam ser pagos, resultando na chegada de muitos imigrantes de diferentes nacionalidades ao Brasil.
Conforme Figueira (2008, p. 69), “Entre 1901 e 1920, mais de um milhão de estrangeiros chegaram ao país - 60% deles foram para as zonas rurais e urbanas de São Paulo, atrás do sonho verde do café”.
Entre 1914 e 1918, o mundo passou pela Primeira Guerra Mundial, com efeitos globais. Muitos soldados que voltaram para seus países tinham sequelas de combate, tornando-se pessoas com deficiência, o que forçou o governo a tomar medidas médicas, assistenciais e educativas. Após a guerra, o Brasil começou a se industrializar mais, porém a agricultura ainda era mais forte, especialmente com a política do “Café com Leite”. A relativa autonomia dos estados após a proclamação da república permitiu que eles organizassem seu ensino primário com a ajuda de diferentes profissionais:
Profissionais diversos como médicos, psicólogos, professores, vão atuando na área, estruturando no fim dos anos de 1920 a base de associações profissionais que, de maneira ambígua e imprecisa, foram criando um campo de reflexão à procura de um espaço efetivo para a concretização de sua ação pedagógica (Jannuzzi, 2006, p. 24).
Na primeira metade da década de 1930, com a população crescendo rapidamente, tornou-se necessário investir em hospitais para atender a todas as pessoas. Como aconteceu durante a revolução industrial na Inglaterra nos séculos XVIII e XIX, a modernização da produção no Brasil causou milhares de acidentes, resultando em deficiências ou até na morte de muitos trabalhadores.
Movimentos sociais e operários se organizaram, houve um aumento na escolarização, e a Constituição de 1934 estabeleceu direitos trabalhistas e o voto feminino. O entendimento sobre os direitos e a capacidade de educação das pessoas com deficiência se ampliou. A educadora Helena Antipoff organizou cursos de formação em psicologia e educação para estudantes com deficiência em diferentes estados brasileiros, fundando, em 1932, a Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais.
A década de 1930 também trouxe o movimento higienista, que defendia uma educação eugênica para criar "uma nação forte e saudável". No âmbito escolar, o escolanovismo propôs uma educação laica e gratuita, expressa no Manifesto dos Pioneiros da Educação em 1932. Tanto o higienismo quanto o escolanovismo tiveram impactos históricos na educação das pessoas com deficiência, propondo um entendimento normativo em que estas deveriam ser educadas dentro dos padrões de "normalidade" e determinismo social. Eles entendiam que a educação:
[...] deixa de constituir um privilégio determinado pela condição econômica e social do indivíduo, para assumir um 'caráter biológico', [...] até onde o permitam as suas aptidões naturais, [...] preparando-se para formar 'a hierarquia democrática' pela 'hierarquia das capacidades' (Manifesto, 2006, p. 191).
Apesar de proporem a democratização do ensino primário, o foco no rendimento biológico criou um distanciamento "meritocrático" que reforçou a marginalização dos supostamente "menos capazes", incluindo pessoas com deficiência. Essas pessoas, embora não fossem mais abandonadas ou queimadas como no passado, eram inseridas em uma "corrida" desigual, onde a sociedade definia o que era normal ou anormal.
No final da década de 1930, o Estado Novo foi instituído com forte inspiração fascista, retirando direitos políticos e o direito à oposição democrática. Durante o Estado Novo, pouco se discutiu sobre as pessoas com deficiência. Sabe-se que o Instituto Benjamin Constant fechou para reforma, mantendo apenas sua imprensa, mas não se esclarece o destino daqueles que viviam no instituto.
Nesse período, houveram criações de hospitais-escolas, a exemplo do Hospital das Clínicas de São Paulo inaugurado em 19 de abril de 1944, no governo de Getúlio Vargas.
Tais mudanças descortinam um período de novas pesquisas no âmbito da reabilitação, neste sentido, os estudos sobre deficiência eram restritos e atrelados a área médica (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1965, p. 64).
Como em outras partes do mundo, também no Brasil a sociedade acreditava que a deficiência era um “problema”, além disso, um “problema” único e exclusivo do indivíduo, nessa linha de raciocínio bastaria prover serviços de reabilitação e buscar “cura” para essa característica até então interpretada como “doença” nas Santas Casas de Saúde e Misericórdia e distante do convívio social (SASSAKI, 2010, p. 29).
A ideia reducionista de que a deficiência é uma “atribuição exclusivamente médica” em essência é segregacionista, além de deixar evidente a resistência da sociedade na época em reconhecer o papel de suas ações, instituições e estruturas no desenvolvimento da pessoa com deficiência (FLETCHER, 1996).
Durante muito tempo, o Estado brasileiro adotou uma postura assistencialista em relação às pessoas com deficiência. Em vez de criar políticas públicas para apoiar diretamente essas pessoas, o governo apenas oferecia apoio a instituições filantrópicas, refletindo as noções sociais sobre a condição de deficiência naquela época.
De abril de 1964 a março de 1985, o Brasil viveu o período sombrio do regime / ditadura militar, que torturou, matou e exilou milhares de brasileiros, incluindo muitos intelectuais.
Em 1967, a Constituição Federal daquela época, no artigo 4º, instituiu assistência para maternidade, infância, adolescência e “educação especial de excepcionais”.
Em 17 de outubro de 1987, o Brasil seguiu as recomendações da ONU feitas em 9 de dezembro de 1975, através da "Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência", e modificou a Constituição de 1967. A emenda nº 12 garantiu benefícios às pessoas com deficiência, visando melhorar suas condições socioeconômicas, com foco nos seguintes aspectos:
- Educação “especial” e gratuita.
- Assistência, reabilitação e reinserção socioeconômica.
- Proibição de atos discriminatórios, abrangendo o trabalho e serviços públicos.
- Possibilidade de acessar logradouros e construções públicas.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, garantias fundamentais, direitos civis e políticos passaram a ser a base do novo Estado Democrático de Direito. Seguindo as tendências globais de defesa dos direitos das pessoas com deficiência, em 1989, o presidente José Sarney sancionou a lei nº 7.853, que tratava da integração social das pessoas com deficiência e criou a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa com Deficiência (Corde).
A partir daqui, serão destacadas algumas leis importantes para a inclusão de pessoas com deficiência na educação, já que houve períodos na história em que necessidades educacionais específicas eram usadas como "um argumento válido" para recusar matrículas em escolas regulares.
Primeiramente, a lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que institui as diretrizes e bases da educação nacional. Esta lei destaca que o Atendimento Educacional Especializado (AEE) deve dar suporte, quando necessário, a estudantes com deficiência e à comunidade acadêmica, sem substituir, mas sim apoiar, os professores da sala de aula regular (BRASIL, 1996).
No entanto, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) não aborda a permanência estudantil. Para isso, foi estabelecido o Decreto nº 3.298/99, que descreve os requisitos mínimos de acessibilidade para pessoas com deficiência (BRASIL, 1999).
Outro decreto importante foi o nº 5.296/2004, que exige que as instituições de ensino cumpram as determinações de acessibilidade para obterem autorizações de funcionamento e renovação de cursos (Decreto nº 5.296, 2004).
No que diz respeito à educação de nível superior, o Programa Incluir destaca-se como uma das principais iniciativas para apoiar a permanência de estudantes com deficiência nas instituições de ensino público. Criado em 2008, o programa é uma parceria entre o Ministério da Educação e Cultura (MEC), as Secretarias de Educação Superior (SESU) e de Educação Especial (SEESP), e as instituições públicas de ensino superior.
O Programa Incluir busca viabilizar o acesso e a permanência de pessoas com deficiência nas Instituições Federais de Educação Superior (IFES), promover a criação e consolidação de núcleos de acessibilidade, e eliminar barreiras atitudinais, pedagógicas, arquitetônicas e de comunicação (BRASIL, 2008).
Em 2011, foi instituído o Plano Viver Sem Limites por meio do decreto nº 7.612/11, com status de emenda constitucional. Em 2015, foi criada a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) nº 13.146, que reúne toda a legislação anterior referente às pessoas com deficiência. A LBI, agora com status de lei e vigente em todo o território nacional, abrange não apenas aspectos educacionais, mas todos os âmbitos institucionais e sociais nos quais o Estado brasileiro atua.
A lei nº 13.146/2015 legitima a cidadania das pessoas com deficiência, ratificando o direito à acessibilidade como fundamental para assegurar os demais direitos dessa população.
A relevância da LBI é tão grande que novos patamares para a perspectiva inclusiva foram alcançados e políticas foram ressignificadas. Uma dessas políticas é a lei nº 12.711, que dispõe sobre a reserva de vagas nas instituições de ensino superior. Em 2016, foi instituída a lei nº 13.409, que altera a lei nº 12.711 que trata da reserva de vagas nas instituições de ensino superior para pessoas pretas, pardas, indígenas, de baixa renda e oriundas de escolas públicas.
A lei nº 13.409/2016 inclui na lei anterior a reserva de vagas para pessoas com deficiência nas instituições de ensino superior reconhecendo a necessidade de garantir a inclusão e a permanência dessas pessoas assim como já era feito com outros grupos sociais minorizados. Essa mudança é um reflexo direto da Lei Brasileira de Inclusão, que ao assegurar a cidadania plena das pessoas com deficiência, destaca também sua vulnerabilidade socioeconômica.
Comentário da autora
No Brasil, assim como no restante do mundo, a sociedade está em um momento histórico onde reconhece que pessoas com deficiência são seres humanos, que a deficiência não é metafísica, restringindo esse pensamento a ambientes religiosos com essas crenças. Os avanços também são extremamente recentes, a deficiência foi reconhecida como uma questão de Direitos Humanos, alcançou a legitimidade e a legalidade em muitos países, incluindo o Brasil, mas enfrenta resistências. A desassociação do assistencialismo, a educação, o trabalho, a efetiva aplicação das leis ainda são um desafio.
Em outras palavras, a organização social e política da luta pelos direitos da pessoa com deficiência demonstrou no campo legal a incoerência de excluir essa população, mas o debate ainda precisa ganhar tração e aderência na sociedade como um todo. Diferentemente do que a intuição leva a crer, pensamentos equivocados, e preconceituosos, não são superados a partir do momento em que se expõe argumentações contrárias, plausíveis e fundamentadas em pesquisas. Ideias comprovadamente infundadas resistem no imaginário popular por muito tempo, as pseudociências e ciências obsoletas atestam isso.
Muitas pessoas vivas hoje nasceram em tempos em que diversos avanços para pessoas com deficiência não existiam, elas precisam se adaptar a estes conceitos recentes. Ainda temos educadores preconceituosos, médicos preconceituosos, legisladores preconceituosos, religiosos preconceituosos, famílias e toda uma sociedade preconceituosa. Por isso, não se trata de julgar o passado com superioridade, se trata de combater gradativamente ideias herdadas, comprovadamente segregacionistas e fazer com que sejam cada vez menos naturais para as futuras gerações.
É através da compreensão e análise do processo sócio-histórico das pessoas com deficiência que, se torna possível perceber a influência da cultura em deslegitimar os esforços para a inclusão efetiva.
Conceito de deficiência no Brasil hoje
Após analisar, de forma resumida, a história é possível perceber que, como qualquer característica humana, a deficiência está contextualizada, isso significa que a percepção acerca dela depende também do momento histórico e da cultura de cada sociedade. A abordagem sócio-histórica das condições humanas depende de um referencial de observação, dos fatores econômicos, culturais, legais e outros que possam gerar influência sobre uma determinada região. Portanto, não há uma interpretação universal sobre a condição de deficiência, assim como não há uma interpretação universal sobre papéis de gênero, sexualidade e etnias.
Assim como ocorre com outras populações historicamente marginalizadas, há um direcionamento internacional promovido pela Organização das Nações Unidas - ONU, Organização Mundial da Saúde - OMS e outras instituições no sentido da inclusão e do combate ao preconceito contra pessoas com deficiência. Porém, deve-se destacar que cada país e cada Estado lida a seu modo com as questões da deficiência, além disso, cada um possui seus próprios desafios. Esses desafios variam dentro do mesmo país, de região para região, de cidade para cidade, porque são transversais e dependem de cada realidade como em qualquer condição humana.
A seguir, será apresentado o conceito de deficiência instituído pela Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Desde sua efetivação, essa lei deve nortear a conduta do Estado e das empresas que operam no Brasil, além de assegurar a cidadania das pessoas com deficiência. Conceituar a deficiência a partir da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) é importante porque a lei deve ser cumprida por todas as pessoas que possuem cidadania brasileira e vivem no Brasil, reconhece a luta de uma população inteira por legitimidade junto ao Estado e aborda a deficiência com precisão enquanto característica.
Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (BRASIL, 2015, Lei nº 13.146, art. 2º).
Muitas pessoas limitam a definição de deficiência à primeira parte da lei, que a descreve como um "impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial". No entanto, a LBI vai além, detalhando que esses impedimentos, quando combinados com uma ou mais barreiras, podem inviabilizar a participação efetiva das pessoas com deficiência na sociedade. A Lei nº 13.146 adota a perspectiva do Modelo Social da deficiência. Para entender melhor, é necessário compreender o que é esse modelo e também seu principal rival, o Modelo Médico ou Biomédico da deficiência.
Para a Ciência, modelos são abstrações idealizadas que permitem explicar o comportamento de algo, seja um órgão do corpo, uma trajetória de objeto, pessoas ou um sistema. Com maior ou menor precisão, esses modelos ajudam a construir representações do mundo (UFSM, 2020).
Nesse contexto, o Modelo Médico e o Modelo Social da deficiência são abstrações opostas que buscam direcionar a perspectiva dos estudos sobre a deficiência. Esses modelos também entram em conflito em outras áreas de pesquisa, como gênero, sexualidade e etnia, afetando diretamente outras populações, além da população com deficiência, a exemplo das pessoas da comunidade trans.
O Modelo Médico da deficiência a entende como um fenômeno exclusivamente biológico, surgindo por diferentes razões e sendo "a exteriorização de um estado patológico, refletindo um distúrbio orgânico, uma perturbação no órgão" (Amiralian et al., 2000, p. 98).
Esse modelo limita a pessoa com deficiência ao seu próprio corpo, desconsiderando fatores como ambiente, sociedade e estímulos. Nessa abordagem, as estruturas não são incluídas, e os impedimentos para a plena participação social da pessoa com deficiência são totalmente atribuídos ao físico do indivíduo.
O Modelo Social da Deficiência, por sua vez, é um instrumento essencialmente político.
Ele considera a deficiência como sistemática e inevitável, focando na população com deficiência de forma geral, em vez de apenas na pessoa individual (UPIAS, 1976).
Muitas pessoas nascem com deficiência, outras a adquirem em acidentes, no trabalho ou devido à idade.
A deficiência é vista como parte da diversidade humana e não como um traço indesejado a ser curado ou corrigido (French; Deploy, 2000, p. 2).
O Modelo Social defende que todas as pessoas precisam de sistemas de saúde, educação, transporte, trabalho, cultura e outros serviços que atendem a sociedade como um todo, devendo esses sistemas ser flexíveis para abranger a população com deficiência. Esse modelo enfoca a sociedade, argumentando que suas estruturas devem incluir a população com deficiência, tirando o foco do indivíduo e colocando-o nas estruturas sociais e no Estado. Em resumo, um corpo fora do padrão não é motivo para a perda da cidadania, da igualdade de oportunidades, da capacitação profissional e da autonomia sobre o próprio corpo.
É com base nesse modelo que a LBI afirma que:
Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (BRASIL, 2015, Lei nº 13.146, art. 2º).
Embora o aspecto biológico da deficiência seja reconhecido, a inclusão social deve ser abordada sob uma perspectiva biopsicossocial. Isso significa considerar não apenas os fatores biológicos, mas também os psicológicos e sociais que afetam a vida das pessoas com deficiência. Essa abordagem é necessária porque, ao longo da história, diversas condições humanas foram usadas como "motivos sociais" para negar acesso e direitos a certas populações.
Mulheres, pessoas pretas e pessoas trans, por exemplo, já foram e, em muitos casos, ainda são impedidas de estudar, trabalhar e exercer a liberdade devido ao preconceito e discriminação em relação aos seus corpos. Essas populações enfrentam barreiras sociais e institucionais que limitam suas oportunidades e direitos.
Da mesma forma, pessoas com deficiência não devem ser vistas apenas pelo prisma de suas características biológicas. É fundamental reconhecer que as barreiras impostas pela sociedade e pelas estruturas institucionais contribuem significativamente para a exclusão e a marginalização dessas pessoas.
Ao adotar uma abordagem biopsicossocial, é possível promover uma inclusão mais efetiva, garantindo que todos, independentemente de suas condições físicas ou mentais, tenham acesso igualitário a oportunidades de educação, emprego e participação plena na sociedade.
Texto sobre deficiência feito por uma pessoa com deficiência
Sou o assunto do depois:
"Nós temos muitos problemas, compreendo sua necessidade, mas depois…"
Duas mentiras, não compreendem e não existe um depois. Mas, sou o assunto de extrema importância:
"É de extrema importância dar atenção às pessoas que são portadoras de necessidades especiais."
Dizem por aí nos discursos em praças públicas, sejam elas reais ou virtuais. Duas mentiras, não consideram tão extremamente importante assim e sequer sabem como se referir, como chamar, ou melhor sequer sabem quem somos nós.
É uma extrema importância relativa, se for uma campanha política precisamos estar lá para fazer as vezes da vítima indefesa sendo acudida pelo político herói no papel de Batman, mas se for na universidade pública aí não é tão importante assim, pois ainda não se sentem preparados para nos receber e lidar com “gente como nós”. Não podem nos dar a assistência “especial” que merecemos nos rejeitam no maior estilo “não é você sou eu” e quando essa frase é usada sabemos que sim o problema é você.
Vão enaltecer o grande ato de “bondade” que é se importar com quem eles chamam de “esse tipo de pessoa”, daí cantarão uma música para lembrar de como você é “especial” porque as suas dificuldades mostram como as vidas deles poderiam estar piores, mas eles têm sorte, eles são “perfeitos graças a Deus”. Sua existência os faz perceber que devem ser gratos e não se queixar de seus problemas, juram que é só para isso que você existe sua “imperfeição” mostra ao mundo que “não existem desculpas para não se esforçar”.
Eu também sou o assunto da comunicação:
"Pensando em melhorar nossa comunicação com os deficientes nós da escola — insira qualquer nome aqui — estamos muito felizes em disponibilizar intérpretes para o surdo mudo, o livro dos três porquinhos em áudio para cegos de 47 anos de idade e lápis de colorir para a pessoa com síndrome de Down e deficientes mentais."
Mais mentiras, ninguém pensou em comunicação, ninguém está feliz, sequer sabem os nomes corretos das muitas manifestações da deficiência e não vamos entrar no mérito de confundirem deficiência com uma eterna infância.
Não adianta tentar se comunicar, vão mascarar sua falta de interesse, vão dizer que você "interpretou mal" e que na verdade é só desconhecimento, frases como “lugar de deficiente não é na mesma escola que os normais” são só um inofensivo desconhecimento pode confiar. Se tentar escrever não adianta, não sabem Braille, se usar a sua língua? Para que? Não sabem LIBRAS, chamam de “a moça da mímica para os mudos no quadrado”, ainda há quem diga que ela atrapalha a estética do vídeo.
No fim do dia pelo voto da maioria escolheram que o rótulo de todos nós seria “retardado”, bravo simplesmente bravo, defendem que os bastidores das nossas dores não devem ser expostos apanhe, mas em silêncio, confundem o que somos, a ignorância a nosso respeito é até esperada. Para completar, nos roubam aos milhões e querem palmas pelas migalhas, se você acha ruim é porque "você não sabe o seu lugar".
Na verdade, nós somos apenas atores ruins performando mal nessa novela mexicana de baixo custo chamada rotina oscilando entre a vontade de ser “normal” e ao mesmo tempo ter destaque. No mundo mediano daqueles que se intitulam “normais”, enquanto lutam dia após dia para se diferenciar, nos observam de cima, com ares de “eu tenho o que você não tem” um corpo que “funciona perfeitamente” se comparando com máquinas, que funcionam, apresentam defeitos e trocam de peças.
Do alto de sua superioridade mecanicista perfeita o mundo “normal” se comporta como uma celebridade, nos ilude que são um ideal a ser alcançado, por nós “máquinas defeituosas” e que vale tudo para estar na média sacrifícios que jamais fariam, mas nos recomendam sem nunca deixar de “sonhar com a cura”. Mas, se perguntarmos: “Normal” como posso existir na universidade pública, no trabalho, na vida se já entre os seus, outras minorias, porém sem deficiências, há tanta impossibilidade consequência das questões sociais de gênero, etnia, sexualidade e falta de dinheiro? Como eu, que também sou tudo que suas minorias são, porque sou através de muitos corpos parte de todos os espaços, posso ter equidade?
Então como em um xeque-mate de xadrez entra em cena o assunto que mais sou, o exemplo de SUPERAÇÃO São tantas mentiras que é até difícil, mas que diferença isso faz? Afinal de contas, se muitos comunicam o que ninguém compreende ou se interessa é como se nada, absolutamente nada fosse dito.
"O nosso palestrante de hoje é o Aleatório, ele é deficiente visual total, total de nascença mesmo gente, um exemplo de superação para todos aqui. Esse menino lindo, guerreiro que vai falar com a gente hoje tem 39 anos, é formado, fez doutorado no exterior, é filho do dono da maior rede de construção civil do estado que provavelmente emprega muitos de vocês aqui que não sabiam do filho porque o pai tem vergonha dele, enfim... Ele comprou muitos dos seus materiais fora do país, teve uma equipe particular dentro de casa para prestar consultoria de acessibilidade privada para sua escola particular e ao seu cursinho pago, tudo no sigilo. Vamos ignorar o fato de que apesar de cego ele ainda é um homem, branco, heterossexual talvez porque deficiente não pensa em sexo, é cristão e acima de tudo rico, muito rico, muito rico mesmo."
"Não precisa focar nisso porque a sua imperfeição já é o bastante para ensinar sobre como não desistir dos seus sonhos para nós que somos perfeitos e não devemos reclamar das coisas e para qualquer deficiente do Brasil, de qualquer lugar, com qualquer deficiência, de qualquer condição social e econômica porque isso não importa com vocês aleatório. PS. Façam de conta que estão prestando atenção e usem o celular discretamente enquanto ele palestra, obrigada."
Ainda que a paciência de Jó paire sobre nós para que expliquemos cada uma das incoerências os Pinóquios da meritocracia vão dizer:
"Mas, eu apesar de não ser assim né, também sofri muito para estar onde estou, o dinheiro era contado, o ônibus era lotado e tive as minhas crises na faculdade, na família e comigo porque eu tenho problemas para lidar com muitas coisas também..."
E por aí vai! Nessa perspectiva tratam como uma equivalência legítima as dificuldades de uma pessoa pertencente ao “mundo normal” e as da deficiência, literalmente querem dizer que apesar de não ter vivências conseguem compreender perfeitamente. Afinal ambas passam pelas mesmas coisas só que tem uma diferença pequena, a deficiência, coisa pouca. Quem pensa assim, como se o sofrimento cotidiano de uma pessoa por qualquer que seja a dor não tem diferença mesmo colocando a deficiência no contexto, porque são todas manifestações supostamente da mesma coisa, aflições humanas e percalços que todo mundo passa, é simplista, ignorante e preconceituoso ainda que sem intenção.
A deficiência não é um adicional, como ketchup no hamburger e batatas fritas que podem acompanhar ou não o lanche sem alterá-lo, ela é uma característica que se soma a todas as outras sim, entretanto não é com impacto sutil ou imperceptível. Isso não é verdade nem para o “mundo normal mediano” onde outros marcadores sociais já fazem diferença, ser mulher branca ou mulher preta, ser mulher rica ou mulher pobre, ser mulher heterossexual ou mulher lésbica já muda todo o contexto. Como a deficiência sendo uma característica que de forma inerente vai alterar as relações de comunicação com o mundo por meio de impedimentos de longo prazo, sejam eles de natureza física, mental, intelectual, sensorial e afins pode não ter impacto? Se justamente a interação dessas características com informações, espaços físicos, atitudes de pessoas sem deficiência e segregações oriundas disso é que criam as barreiras e o mundo paralelo de quem é julgado como imperfeito por não ser adequado ao “mundo normal”.
A deficiência é simplesmente a característica capaz de unir todos os outros preconceitos, mulheres ao longo da história lutaram pela sua Independência da figura masculina e sejam elas brancas ou pretas, ricas ou pobres, heterossexuais ou lésbicas, trans ou cisgêneros, se não forem pessoas com deficiência e estiverem imersas em um contexto de ignorância dessa condição elas vão concordar que a mulher com deficiência precisa de tutela. Vão concordar também que ela precisa de cuidados e precisa de assistência familiar até o fim da vida, a despeito de seus desejos, que são irrelevantes.
As próprias mulheres não param para se questionar sobre o que fariam se fossem violentadas e não tivessem a possibilidade de denunciar a agressão, não por falta de vontade ou porque estão com medo, mas pelo fato de serem surdas e LIBRAS ser a sua língua mesmo querendo não conseguiriam. As lésbicas não cogitam a possibilidade de haver mulheres lésbicas com deficiência na maioria das vezes, as mulheres trans (em alguns casos atreladas ao medo que a transfobia gera de não serem lidas como uma mulher, o que por si só ameaça a sua vida) acabam cultuando aos padrões estéticos e de beleza da normatividade e julgam com superioridade a condição de deficiência.
Todas as mulheres pretas, que muitas vezes são mães solteiras e possuem filhas com deficiência, quantas não questionam Deus porque a sua filha não pode “ser normal” e trabalhar, ajudar nas contas de casa, ter uma vida “normal e de felicidade” ainda que elas próprias não sejam felizes, elas amam com ressalvas causadas pelo repúdio a deficiência então como não faz diferença? Pense nisso para outras esferas, escolas, universidades, hospitais e a sociedade inteira.
"Minha amiga teve um filho com deficiência e precisa aceitar, afinal de contas a criança não tem culpa..."
Diz a pessoa que ao ter um bebê com deficiência não se "conforma", não "aceitaria" nunca. Agora vamos dar alguns exemplos, para ver se de uma vez por todas entendem as diferenças com um exercício de lógica.
A maioria da população é pobre, se isso for verdade e é, então a maioria das pessoas que nascem e adquirem deficiências também é pobre e herda todos os marcadores sociais só que de maneira proporcional. O que isso significa? Que se a maioria das pessoas é pobre, preta e parda, então a maioria das pessoas com deficiência também o será. Quantas terão dinheiro para os melhores acompanhamentos profissionais? Para comprar todas as tecnologias que são apropriadas às suas condições? Ou melhor, quantas famílias sequer sabem que essas tecnologias existem? A maior parte das pessoas de baixa renda trabalha em serviços denominados braçais, como um trabalhador com deficiência se insere? Quantos terminam a escola? Quantos se capacitam? Quantos estão na universidade e mais quantos estão na universidade pública? Por que não querem? Ou por que não podem?
As pessoas com deficiência, somando todas as deficiências, são menos de 10% dos acadêmicos no ensino superior do Brasil, será que não querem? Qual acadêmico SEM deficiência ao sair para a faculdade e chegar suado e cansado no ponto de ônibus teve a porta do veículo batida em seu rosto e um motorista gritando “o elevador está quebrado, pega o próximo” e esse próximo demorar três horas, não porque os ônibus não passam, mas porque não comportam a cadeira de rodas? Ah! Na verdade, o acadêmico sem deficiência não usa cadeira de rodas, ou bengalas, ou andadores.
Qual acadêmico sem deficiência ouve "se você fosse autista de verdade não estaria na faculdade" ou precisa lidar com professores que dizem coisas como "lugar de cego não é na faculdade" e dão aulas usando expressões como "aqui, em vermelho como vocês podem ver”... Nenhum! Não dá para correr atrás do ônibus porque não podemos pegar todos os ônibus, não dá para sofrer estudando para as difíceis provas de cálculo porque estudar é a última coisa que conseguimos e por mais que digam “sua obrigação é só estudar” no nosso caso é uma mentira. Quando paramos para estudar já estamos cansados de lutar por acessibilidade, acessibilidade, acessibilidade. Daí a pergunta: Você já teve a sensação de estar gritando em uma câmara de silêncio? Quando você demonstra a cada centímetro do seu corpo o tamanho da sua dor! Mas, apesar das palavras, apesar das suas expressões, apesar dos mil e um apelos subjetivos que você deixa escapar como um sinalizador de navio à deriva ninguém consegue entender. O silêncio reina e sufoca todos os pedidos desesperados de ajuda, ainda que venham de uma multidão, se muitos comunicam o que ninguém compreende ou se interessa é como se nada, absolutamente nada fosse dito.
Não é só sobre se aceitar é sobre se fazer entender em suas nuances particulares, não é só sobre superar as barreiras é sobre ter condição para primeiro perceber que elas existem, não é só pedir ajuda, precisa encontrar primeiro alguém que possa ajudar sem “busque a cura” ou “como cegos limpam a bunda?” é sobre estar sozinho até mesmo no escopo dos excluídos. Antes de estudar tem que pensar em como vai ser, antes de trabalhar tem que convencer alguém a contratar, até para namorar tem que mostrar que pode e se precisar de psicólogo tem que desconstruir ele primeiro, ensinar o terapeuta a fazer terapia, o professor a dar aulas, o médico a exercer medicina, saber tudo sobre todos os papéis porque afinal de contas você é uma pessoa com deficiência.
"Nós o mundo estamos aprendendo e você precisa entender que é um processo lento, demorado e gradual precisamos de você para nos ensinar mesmo que não tenhamos vontade de aprender, você precisa compreender e ter paciência conosco, precisa ser resiliente, persistente, autossuficiente e ter bom humor. Enquanto isso nós… Bom na verdade nós nada, sorte sua se convencer alguns de que tem razão, parece injusto? Você precisa se esforçar, é assim com todo mundo, você não é especial. "
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