Capacitismo: o que significa?

Até o nome do preconceito contra a PcD é desconhecido, entenda as bases e a força da discriminação que une todas as outras.
Uma pessoa utilizando uma cadeira de rodas está de costas, observando um grupo de jovens sentados em círculo em um gramado, participando de uma atividade ao ar livre.

Apresentação

Discriminações e preconceitos permeiam diversos aspectos da sociedade, e, com frequência, são tratados de maneira simplificada como se fossem um único fenômeno. Muitas pessoas acreditam que termos como racismo, machismo, capacitismo, transfobia, entre outros, poderiam ser resumidos simplesmente como "preconceito". No entanto, essa visão superficial ignora as nuances e especificidades de cada forma de discriminação. Entre elas, o capacitismo, que é o foco central deste artigo, destaca-se por ser uma das formas de discriminação mais presentes e menos discutidas. O capacitismo, que se refere ao preconceito contra pessoas com deficiência, tem suas raízes em estereótipos de inferioridade e em ideologias historicamente associadas à eugenia.

O capacitismo é uma discriminação que, além de ser invisibilizada, carrega a ideia de que a deficiência é algo que deve ser corrigido ou eliminado, em vez de ser visto como uma parte da diversidade humana. Esse preconceito afeta diretamente a vida de milhões de pessoas com deficiência, limitando seu acesso a direitos básicos e perpetuando a exclusão social. Ao longo do texto, a complexidade dessa forma de discriminação será explorada em profundidade, destacando como ela está relacionada com a criação e perpetuação de estereótipos e preconceitos.

Assim como na física, onde a observação de um fenômeno muda de acordo com o referencial, a percepção sobre a deficiência e o capacitismo também varia conforme os contextos culturais, sociais e históricos. A falta de compreensão sobre o capacitismo e suas particularidades muitas vezes leva à simplificação do tema, desconsiderando suas raízes históricas e os impactos únicos que gera. Este artigo visa desmistificar o capacitismo, nomeando-o corretamente e analisando suas manifestações e consequências.

Para combater essa discriminação de forma eficaz, é necessário mais do que generalizações. É fundamental entender as origens do capacitismo, como ele se relaciona com outras formas de discriminação e o que é preciso fazer para enfrentá-lo. Com isso, o objetivo é promover uma reflexão profunda sobre a necessidade de uma abordagem mais específica e consciente, que valorize a diversidade humana em todas as suas formas.

Observação: Este artigo possui um pré-requisito para o entendimento completo do conteúdo.
Esse pré-requisito é a leitura do artigo "Deficiência: o que significa?".

Por que usar uma palavra diferente?

Muitas pessoas acham que não há necessidade de criar várias palavras para falar de diferentes formas de preconceito, como machismo, racismo, capacitismo, transfobia, homofobia, lesbofobia, etc. Para elas, tudo isso é simplesmente preconceito, e devemos lutar contra todos da mesma forma, dando oportunidades iguais para todas as pessoas. Segundo esse pensamento, não seria preciso ter um nome diferente para cada tipo de discriminação.

No entanto, esse argumento, embora comum, ignora as diferenças importantes entre cada forma de preconceito. Assim como existem várias engenharias (civil, computação, ambiental etc.), que compartilham uma base em comum, não dá para simplificar chamando todas de "engenharia" apenas. Isso porque, mesmo com algumas semelhanças, cada uma tem seu campo específico de atuação e impacto.

Da mesma forma, cada tipo de discriminação tem origens e consequências próprias. Simplificar tudo como "preconceito" acaba desvalorizando as particularidades de cada uma dessas formas de exclusão, que afetam as pessoas de maneiras diferentes. Por isso, é importante nomeá-las separadamente, para que se possa entender melhor como elas se dão e o que é preciso fazer para combatê-las.

Não dá para falar sobre capacitismo, que é uma forma de discriminação contra pessoas com deficiência, sem antes entender o que é preconceito, discriminação e estereótipo. Esses conceitos são a base de onde vêm as palavras específicas para cada tipo de discriminação, como nos mostra Joaquim (2006), que estudou a relação entre igualdade e a discriminação.

  • Preconceito: Base Ideológica

    O preconceito é uma ideia ou crença que as pessoas formam antes de conhecer algo ou alguém de verdade. Essas ideias são baseadas em generalizações e não em fatos, e normalmente vêm de estereótipos. O preconceito funciona como uma maneira distorcida de ver o mundo, onde as pessoas agem sem questionar essas crenças.

  • Estereótipos: Simplificações Prejudiciais

    Seguindo o preconceito, surgem os estereótipos, que são ideias simplificadas e generalizadas sobre um grupo de pessoas. Eles reforçam o preconceito porque transformam uma característica de um grupo em uma "verdade" para todas as pessoas desse grupo, perpetuando visões distorcidas.

  • Discriminação: O Preconceito em Prática

    A partir do preconceito e dos estereótipos, chega-se à discriminação, onde essas ideias se transformam em ações ou omissões que prejudicam as pessoas. A discriminação não é apenas uma opinião; envolve atitudes concretas que violam direitos, como quando alguém é impedido de conseguir um emprego por causa de sua cor ou gênero, ou quando um lugar não é adaptado para pessoas com deficiência. Esses atos discriminatórios ampliam as desigualdades sociais.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Joaquim (2006, p. 1).

Preconceito, estereótipos e discriminação formam um ciclo que reforça a desigualdade social. As pessoas criam estereótipos, que alimentam preconceitos, e esses preconceitos acabam se transformando em ações discriminatórias. As formas de discriminação, como racismo, machismo e capacitismo, vêm dessa combinação de fatores. Para combater a discriminação, é preciso não só enfrentar as ações visíveis, mas também trabalhar para desfazer as ideias e crenças erradas que estão por trás delas.

O que a lei diz sobre isso?

A lei aborda a discriminação de forma clara:

Segundo a Constituição, a discriminação é ilegal e pode resultar em prisão, de acordo com o artigo 5º. No Brasil, o direito penal trata a prática de discriminação e preconceito por motivos como raça, cor, religião ou origem nacional como crime, conforme a Lei 7.716/89, atualizada pela Lei 9.459/97.

O Código Penal (artigo 140, parágrafo terceiro) prevê penas de 1 a 3 anos de reclusão e multa para casos de injúria que envolvam elementos relacionados à raça, cor, etnia, religião ou origem.

Com essas informações, pode-se concluir que a violação de direitos decorre de atos discriminatórios, sejam ações ou omissões, originados em preconceitos baseados em estereótipos. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, preconceito e discriminação não são sinônimos. A discriminação é uma consequência do preconceito. Ou seja, discriminar significa colocar em prática o preconceito que foi criado por meio de estereótipos, resultando na violação dos direitos de pessoas ou grupos discriminados.

O processo segue um fluxo bem definido:

  1. As pessoas constroem estereótipos, que são interpretações generalizadas e sem base sobre características de indivíduos ou grupos.
  2. Esses estereótipos levam ao preconceito, que é uma "opinião" formada sem conhecimento real.
  3. O preconceito, então, gera a discriminação, que é a ação ou omissão que resulta na violação dos direitos de alguém.

Essa sequência revela que a discriminação é uma prática concreta que vem de um processo anterior, alimentado por estereótipos e preconceitos. Embora a lei trate da discriminação como uma ação visível e punível, existem outros aspectos não legais que também precisam ser considerados, como fatores culturais, históricos e sociais, que ajudam a entender como os preconceitos e discriminações estruturais surgem.

Savazzoni (2015) afirma que:

"A discriminação e o preconceito mostram como a humanidade ainda é limitada em seu entendimento, e surgem de uma sensação de superioridade de uns indivíduos sobre outros, apoiada em conceitos econômicos, sociais, religiosos e até distorções de ideias científicas." (SAVAZZONI, 2015, p. 40)

Portanto, ao aprofundar o estudo desses termos, percebemos que o preconceito e a discriminação não estão limitados a situações isoladas; eles se manifestam em muitos contextos diferentes. No caso do capacitismo, por exemplo, ele vai além da discriminação legal e carrega estereótipos de inferioridade sobre o que pessoas com deficiência podem ou não fazer.

Isso explica por que é importante usar palavras específicas para nomear diferentes formas de preconceito e discriminação, dada a complexidade do assunto e a necessidade de comunicar essas questões à sociedade.

Preconceitos, estereótipos e discriminações são fenômenos sociais que podem ser estudados a partir de várias perspectivas, como a história, antropologia, geografia e religião. Diferentes formas de preconceito, como racismo, sexismo e xenofobia, têm causas e efeitos únicos (García et al., 2018). Reduzir todos esses fenômenos a um único termo simplificaria suas complexidades e implicações. Cada tipo de preconceito tem raízes históricas e sociais distintas, exigindo análises e soluções específicas (Robinson & Jones, 2015).

Outro ponto importante é que, uma abordagem generalista pode não permitir explorar as raízes profundas de cada manifestação do preconceito e da discriminação. A diversidade de terminologias reflete a necessidade de compreender esses fenômenos de forma completa e eficaz, visando estratégias mais precisas de combate e conscientização (Brown & Williams, 2020).

trazendo para o contexto da pessoa com deficiência, o capacitismo é um dos preconceitos e discriminações mais comuns e menos conhecidos. Nomear o capacitismo é uma forma de dar a visibilidade que é necessária para combater esse tipo de discriminação. Todas as manifestações de preconceito e discriminação têm suas particularidades e impactos na vida das pessoas, e é importante reconhecê-las para que se possa lutar contra elas de uma forma mais eficaz e para isso são sim necessárias ações generalistas e palavras comuns, mas também é necessário nomear cada uma dessas formas de discriminação e promover açoes especificas de combate a cada uma delas.

As relações da eugenia com o capacitismo

A eugenia é uma teoria que surgiu no século XIX e que propunha a suposta "melhoria" da humanidade por meio da seleção de características consideradas desejáveis e da eliminação de características consideradas indesejáveis. A eugenia foi usada para justificar políticas de esterilização forçada, segregação e extermínio de pessoas consideradas "inferiores" por quem acreditava nessa teoria.

Apesar da palavra "eugenia" ter sido criada por Francis Galton em 1865, a humanidade já se comportava de forma eugenista muito antes disso desde os tempos mais remotos da história. A eugenia possui uma relação intrínseca (ou seja, de natureza íntima) com o racismo, o capacitismo, o sexismo e outras formas de discriminação, pois todas essas ideias partem do mesmo princípio de que algumas pessoas são superiores a outras.

No que diz respeito ao capacitismo, a eugenia pode ser considerada como o seu estágio final dentro de uma sociedade que acredita que a deficiência é um problema a ser eliminado. A eugenia, ao longo da história, foi usada para justificar a esterilização forçada de pessoas com deficiência, a segregação em instituições e a exclusão social. A eugenia é uma forma extrema de capacitismo, que busca eliminar as pessoas com deficiência da sociedade, em vez de promover a inclusão e a acessibilidade.

A Alemanha nazista é um dos exemplos mais conhecidos, se não o mais conhecido, de como a discriminação eugênica foi usada para justificar o extermínio de milhões de pessoas consideradas "indesejáveis" pelo regime. Supostamente amparados pela ciência, os nazistas colocaram em prática uma série de políticas com viés eugenista, uma das primeiras entrou em vigor a partir de 1933 e consistia em esterilizações forçadas de pessoas “suspeitas” de possuírem genes para deficiências (AUGUSTIN, 2012).

"Hitler considerava as pessoas com deficiência como “atrasos” em seu projeto de sociedade, então entra em cena o projeto Aktion T4, apelidado de maneira errada como “Eutanásia”, porém de “morte tranquila” não tinha nada." (Artigo Deficiência: o que significa? tópico 2: História da deficiência, VI, Segunda Guerra Mundial)

Com início em 1939 esse projeto visou a morte, de forma massiva, de idosos, pessoas com deficiência e bebês que eram avaliados por uma equipe médica, havendo constatação (segundo sua própria lógica) de que estes seriam “fracos” recebiam doses letais de drogas ou eram abandonados. Para os nazistas essas eram “vidas que não mereciam ser vividas” e justamente por esse pensamento que o infame programa se estendeu para outras áreas da sociedade (GOLDIM, 1998).

O extermínio de pessoas com deficiência era feito em campos de concentração, disfarçados de clínicas psiquiátricas, com exceção dos bebês que eram mortos nos próprios hospitais em que nasciam. Roney Cytrynowicz (1995, p. 217) destaca que:

"Eu gostaria de fazer um parêntesis e lembrar que, a rigor, a primeira câmara de gás foi utilizada contra pacientes de um hospital psiquiátrico no programa nazista chamado de “eutanásia”, que matou cerca de 100 mil alemães considerados “doentes mentais e incuráveis”, entre eles epiléticos, surdos, cegos, pessoas com lábio leporino, também pessoas consideradas “associais” e judeus."

Os trechos citados mostram como a eugenia direcionou os princípios nazistas, a discriminação levada as últimas consequências, as ideias de "inferioridade", "fraqueza", "degeneração", "incapacidade" e "raça pura" custaram a vida de milhões de pessoas.

Diferentemente do que muitas pessoas pensam, ideias eugenistas não morreram com o fim da Segunda Guerra Mundial. Ainda hoje, esses pensamentos estão presentes em nossa sociedade e podem ser vistos em discursos de figuras públicas, acadêmicos e outros grupos que se dizem "preocupados com a qualidade de vida da população". Um exemplo disso é o biólogo e escritor Richard Dawkins, que defendeu a eugenia em 2020.

Richard Dawkins defende a eugenia em 2020

print de um tweet de Richard Dawkins defendendo a eugenia em 16 de fevereiro de 2020.

Descrição da imagem: Print de um tweet de Richard Dawkins, datado de 16 de fevereiro de 2020, com um texto em inglês que, em uma tradução livre, diz: "apesar da eugenia ser condenável dos pontos de vista ideológico, político e moral nós não devemos concluir que ela não funciona, funciona para cavalos, vacas, porcos, cachorros e rosas."

No ano de 2014 o biólogo Richard Dawkins, já havia feito uma declaração igualmente controversa, dizendo que seria "imoral" ter um bebê com Síndrome de Down, o que gerou grande indignação. Para quem deseja ler a matéria completa, acesse o link: Richard Dawkins diz que ter bebê sabendo que tem Down seria "imoral".

O biólogo é um cientista muito conhecido e também um dos mais famosos defensores do ateísmo, sendo famoso tanto pelos seus livros quanto pelos debates que trava com religiosos. Justamente por isso é importante deixar explícito que se deve separar a ciência das pessoas cientistas. A ciência busca a replicação dos resultados, a possibilidade de contestar ideias (como aconteceu com a eugenia e a frenologia) e a abertura para que um conceito esteja errado. Já cientistas, como qualquer pessoa, têm seus próprios vieses, crenças e preconceitos.

A autoridade de uma pessoa não deve ser um motivo para acreditar em tudo que ela diz sem questionar ou verificar, Richard Dawkins é uma pessoa, e sua opinião não representa a ciência como um todo ou a comunidade científica. No entanto, sua importância e influência podem dar suporte a ideias extremistas e preconceituosas de pessoas anônimas, com uma suposta base científica que vem da fala de um cientista famoso e renomado. Ou seja, a influência de uma pessoa pode e deve ser questionada, e é importante que a sociedade esteja atenta a isso.

O divulgador científico Emílio Garcia, através do canal de YouTube BlablaLogia, falou sobre a defesa da eugenia por Dawkins, apontando suas incoerências e os motivos pelos quais a sociedade deve se manter vigilante contra discursos eugenistas.

Transcrição do vídeo de Emílio Garcia sobre Richard Dawkins

A transcrição do que foi dito no vídeo dele está a seguir. Para quem deseja assistir o vídeo completo, acesse o link: Richard Dawkins e a eugenia.

(00:00) E aí, galera! Tudo bem com vocês? Quem fala aqui é Emílio Garcia do canal “Notícias Científicas da Semana”. Hoje vamos falar sobre Dawkins falando besteira no Twitter. No primeiro tweet dele, Dawkins traz um tema muito controverso na biologia e na nossa sociedade: a eugenia. Em uma tradução livre, no tweet ele diz que, apesar da eugenia ser condenável do ponto de vista ideológico, político e moral, não devemos concluir que ela não funciona. Ele afirma que, claro, ela funciona, baseando-se no fato de que ela funciona com cavalos, vacas, porcos, cachorros e rosas. Se funciona com esses organismos, por que não funcionaria com humanos? Ele termina o tweet dizendo: "fatos ignoram a ideologia". Essa frase é fundamental para a discussão de hoje.

(00:38) Richard Dawkins é um biólogo formado pela Universidade de Oxford. Além de sua graduação, ele também fez mestrado e doutorado na mesma instituição. Seus primeiros trabalhos foram na área de etologia, estudando o comportamento animal e como os animais tomam decisões. Foi com esses primeiros trabalhos que ele foi contratado por uma universidade na Califórnia, onde continuou desenvolvendo suas pesquisas como etólogo. Esses trabalhos o levaram de volta a Oxford, agora como professor. Em Oxford, ele começou a explorar biologia evolutiva, além da etologia.

(01:37) No entanto, Dawkins é mais conhecido do grande público por seu livro de 1976, "O Gene Egoísta". Nele, ele popularizou conceitos da evolução, traduzindo-os para um público leigo. Ele introduziu a ideia de que o gene é a unidade central da seleção natural. Curiosamente, Dawkins também criou o termo “meme” neste livro, que ele definiu como uma unidade de informação replicável, semelhante ao gene na genética, mas que se espalha de cérebro em cérebro ou de um meio de armazenamento para outro, como de livro para livro.

(02:14) Dawkins continuou discutindo a evolução em vários livros, como "O Fenótipo Estendido" e "O Relojoeiro Cego". Neste último, ele critica a ideia de que é necessária uma entidade superior para criar organismos complexos. Nos últimos anos, ele ficou mais famoso por sua defesa do ateísmo, principalmente com seu livro "Deus, um Delírio", onde ele afirma que um criador sobrenatural não existe e que a fé religiosa é uma ilusão, podendo ser perigosa. Este livro foi traduzido para 35 idiomas e vendeu milhões de cópias.

(03:26) Apesar de ser lembrado como um crítico da religião, não podemos esquecer que Dawkins é um biólogo respeitado e defensor da teoria da seleção natural de Darwin. É importante discutir isso porque o darwinismo e a eugenia estão intimamente ligados. Embora o termo "eugenia" tenha sido cunhado no século XIX, práticas semelhantes já eram comuns em várias civilizações antigas, como os gregos, celtas e povos nativos da América do Sul, que eliminavam pessoas deficientes ou doentes para favorecer uma sociedade mais forte.

(03:59) O termo "eugenia" foi cunhado por Francis Galton, primo de Charles Darwin, em 1865. Galton foi diretamente influenciado pelo livro de Darwin "A Origem das Espécies". No seu livro, Galton define a eugenia como o estudo dos agentes sob controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais de futuras gerações, física ou mentalmente. Ele acreditava que a inteligência era hereditária, não fruto do ambiente, e defendeu a eugenia positiva, que promovia casamentos seletivos para aumentar a inteligência.

(05:09) As ideias de Galton foram elogiadas pela comunidade científica da época, com a revista Nature publicando artigos apoiando suas teorias. A partir desse conceito, ele propôs que a inteligência fosse promovida por meio de cruzamentos seletivos, assim como já era feito empiricamente com plantas e animais, como o milho e as vacas.

(06:15) Darwin foi uma influência significativa para Galton, explicando que a seleção artificial era uma maneira de entender a seleção natural. A seleção artificial é quando os humanos escolhem características em animais e plantas que desejam, promovendo cruzamentos entre aqueles que possuem tais características. Galton aplicou esse conceito aos seres humanos, sugerindo que características hereditárias poderiam ser selecionadas da mesma forma.

(07:23) As ideias de Galton se espalharam globalmente, especialmente em uma época de crescimento populacional descontrolado nas classes mais pobres na Inglaterra. A combinação da teoria da seleção natural e o aumento do conhecimento em genética criou a preocupação de que a população poderia sofrer uma degeneração biológica.

(08:37) Com o crescimento da eugenia como prática científica, várias sociedades ao redor do mundo começaram a adotar essas ideias, incluindo o Brasil e os Estados Unidos. No entanto, a eugenia ganhou destaque trágico no regime nazista, com leis que previam a esterilização e extermínio de pessoas com deficiências físicas ou mentais para impedir que essas características fossem transmitidas a gerações futuras.

(09:49) Após a Segunda Guerra Mundial, a eugenia negativa, que promovia a eliminação de características indesejadas, continuou em países como Suíça, Finlândia, Dinamarca, Noruega e Suécia, onde o processo de esterilização compulsória se manteve até a década de 1970.

(10:22) Hoje, as novas tecnologias de manipulação genética reacendem o debate sobre eugenia, com alguns pesquisadores sugerindo que o aprimoramento genético pode ser uma forma moderna de eugenia. No entanto, a maioria dos cientistas rejeita essa ideia, afirmando que a seleção genética levanta sérios dilemas éticos e morais.

(11:32) A afirmação de Dawkins no Twitter foi amplamente criticada, mesmo do ponto de vista biológico. O conceito de "melhoria" na evolução não faz sentido, pois a evolução não busca "melhorar" organismos, mas sim adaptar-se ao ambiente.

(12:01) A ideia de que a evolução serve para melhorar os organismos não faz sentido nem do ponto de vista evolutivo, nem genético. A seleção natural é um processo de adaptação ao ambiente, não de aperfeiçoamento. Quando aplicamos esse conceito de "melhora" à eugenia, caímos em um problema ético e científico. A evolução é sobre adaptação ao ambiente, não sobre criar organismos "melhores".

(12:38) Esse conceito de melhoria é perigoso, principalmente ao ser aplicado a seres humanos. Ao selecionarmos características humanas que consideramos "melhores", eliminamos variabilidade genética, o que pode ser prejudicial à sobrevivência da espécie.

(13:10) O exemplo mais claro de como a seleção artificial pode ser prejudicial é o caso de raças de cães, que sofrem de problemas de saúde devido à seleção de características desejáveis, como focinhos achatados que causam problemas respiratórios.

(13:41) Quando voltamos à eugenia, fica claro que as características que consideramos benéficas são escolhidas por quem detém o poder. No início da eugenia, por exemplo, ser pobre era considerado uma doença hereditária, e havia ideias de impedir pessoas pobres de se reproduzirem para eliminar a pobreza.

(14:49) Um problema grave é a suposição de que determinadas características são determinadas exclusivamente pela genética, desconsiderando fatores socioeconômicos. Galton, por exemplo, acreditava que a inteligência de sua família era hereditária, ignorando o fato de que eles eram ricos e tinham acesso a melhor educação.

(15:20) A relação entre causa e efeito de certas características já foi mal interpretada antes. Por exemplo, um estudo dos anos 1950 sugeria que casas com bibliotecas produziam filhos mais inteligentes, quando na verdade, a presença de livros estava correlacionada com pais mais educados que valorizavam o estudo.

(16:55) Outro ponto controverso na declaração de Dawkins é que ele defende a teoria da seleção natural, que depende da variabilidade genética. A eugenia, ao contrário, propõe eliminar variabilidade, o que poderia prejudicar a espécie humana a longo prazo.

(17:28) O que surpreende é Dawkins trazer à tona o tema da eugenia no atual contexto político, em que movimentos conservadores e racistas estão em ascensão globalmente, inclusive no Brasil, Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra.

(18:31) O próprio Dawkins foi acusado recentemente de comentários racistas, ao dizer que os sinos da Catedral de Oxford são mais agradáveis ao ouvido do que o chamado à oração dos muçulmanos.

(19:09) As distinções raciais defendidas pelos primeiros eugenistas não têm base biológica. Estudos mostram que as diferenças genéticas entre indivíduos de uma população podem ser maiores do que entre indivíduos de populações diferentes.

(19:42) Compreender a eugenia do ponto de vista biológico revela que ela não faz sentido genético nem evolutivo. Entender suas origens morais no século XIX e sua aplicação até meados do século XX é fundamental ao discutir as afirmações de Dawkins.

(20:17) Há duas possíveis explicações para o tweet de Dawkins. A primeira é que ele realmente concorda com certos aspectos morais e éticos da eugenia. A segunda é que ele simplesmente não soube usar as redes sociais, como ele mesmo afirmou ao tentar justificar sua declaração.

(20:50) Independentemente das intenções de Dawkins, é essencial que entendamos conceitos científicos para formar uma sociedade crítica, capaz de discutir temas tão delicados como este. E é isso, pessoal! [...]

A defesa moderna da eugenia, como exemplificado pelas declarações controversas de Richard Dawkins, mostra que ainda há vozes na sociedade que promovem a ideia de controle genético com base em supostas melhorias. Embora Dawkins argumente que a eugenia "funciona" em animais, a extrapolação dessa ideia para os seres humanos ignora completamente os dilemas éticos, morais e sociais envolvidos. Além disso, a ciência evolutiva, que Dawkins "tanto defende", não valida a eugenia como um meio de "melhorar" a espécie humana, pois a seleção natural não busca aprimoramento, mas adaptação ao ambiente.

A eugenia, quando aplicada à sociedade humana, abre espaço para justificativas perigosas de discriminação e opressão, particularmente contra grupos já vulneráveis, como pessoas com deficiência, reforçando a necessidade de vigilância constante contra discursos que possam reviver esses ideais.Ao normalizar a ideia de "melhoria" da espécie humana por meio da seleção genética, figuras proeminentes como Dawkins dão suporte a ideologias que historicamente foram utilizadas para justificar políticas de eliminação de pessoas com deficiência, pessoas pretas, pessoas pobres, pessoas LGBTQIA+ outros grupos considerados "inferiores".

A relação entre eugenia e capacitismo é uma expressão clara de como a exclusão de pessoas com deficiência sempre foi tratada como uma "solução" para a criação de uma sociedade "melhorada". Ao defender que a deficiência é algo que deve ser eliminado, a eugenia reforça o capacitismo, que vê a deficiência como um problema a ser erradicado, em vez de como parte da diversidade humana que deve ser acolhida.

O princípio subjacente à eugenia é a crença na superioridade de alguns indivíduos sobre outros com base em características biológicas, o que cria um terreno fértil para todo tipo de discriminação. A retórica de Dawkins sobre a eugenia, ao comparar seres humanos com animais e plantas, pode parecer inofensiva à primeira vista, mas sua popularização corre o risco de criar um ambiente em que a eliminação de características consideradas "indesejáveis" seja aceita ou, pelo menos, discutida como uma possibilidade válida, o que pode abrir portas para discriminações ainda mais intensas.

Portanto, a naturalização de discursos eugenistas, quando promovida por figuras influentes, não apenas reaviva ideias perigosas do passado, mas também reforça preconceitos já existentes, como o capacitismo. Isso perpetua uma visão de sociedade em que a diversidade humana é vista como um problema a ser corrigido, em vez de uma riqueza a ser celebrada e respeitada. A aceitação dessas ideias pode gerar políticas e práticas que marginalizam ainda mais grupos vulneráveis, transformando uma sociedade que deveria lutar por inclusão e igualdade em uma que reforça a exclusão e a discriminação. É essencial que a sociedade permaneça vigilante contra esses discursos, especialmente quando vindos de figuras com grande influência, e continue a questionar, criticamente, as ideias que ameaçam os princípios de direitos humanos e dignidade para todas as pessoas.

Para saber mais

Afinal, o que é capacitismo?

O capacitismo começou a ganhar destaque nos anos 1990, mas foi só a partir dos anos 2000 que o termo começou a ser mais conhecido e discutido. Hoje em dia, ele está se tornando mais comum. Para entender melhor o capacitismo, serão usadas as ideias de três estudiosos: Campbell, Wolbring e Goodley.

Campbell foi uma das primeiras a estudar a deficiência de forma crítica. Seus trabalhos de 2001, 2008 e o livro Contours of ableism (2009) são referências importantes nessa área. Ela argumenta que o capacitismo está baseado na ideia de que existe um "padrão ideal" de corpo e habilidades, que são considerados melhores e mais valiosos do que outros tipos de corpos. Isso afeta a maneira como as pessoas pensam e agem, levando a ver aqueles que não seguem esse padrão "perfeito" como "anormais" ou "errados".

Segundo Campbell, o capacitismo é:

"[...] uma rede de crenças, processos e práticas que cria um tipo específico de corpo e identidade (padrão corporal), visto como perfeito, típico da espécie e, por isso, essencial e totalmente humano. A deficiência, então, é mostrada como um estado inferior do ser humano." (CAMPBELL, 2001, tradução, p. 44)

Esse trecho mostra que o capacitismo faz com que as pessoas enxerguem quem tem deficiência como “menos valioso” por causa de seus corpos, como se quem não tem deficiência fosse "superior". É uma maneira de organizar as pessoas de forma hierárquica.

Na sociedade, "desde que uma criança nasce, ela já entra em um mundo que manda a mensagem de que ser uma pessoa com deficiência é ser inferior" (CAMPBELL, 2009, p. 17, tradução).

Essas ideias, como outras na sociedade, influenciam a forma como as pessoas com deficiência constroem sua identidade. Isso faz com que muitas tentem incansavelmente buscar uma “cura” ou “superação” para serem minimamente aceitas. Esse processo cria um ciclo de dificuldades e frustrações, porque, mesmo com adaptações, assistência médica e tecnologias disponíveis, é impossível viver dentro dos padrões considerados "normais", ou fingir que a deficiência pode ser totalmente ignorada (CAMPBELL, 2009).

Esse fenômeno é chamado de internalização do capacitismo, e suas consequências incluem baixa autoestima, raiva, desprezo pelo próprio corpo e problemas de saúde mental, causados pela ansiedade de esperar por avanços médicos ou tecnologias melhores. Essa busca incessante pela "normalidade" faz com que pessoas com deficiência, suas famílias e instituições foquem na "superação", deixando de lado a qualidade de vida no presente. Além disso, muitas vezes há um esforço para esconder a deficiência ou "se esforçar" para se adequar aos padrões "normais", tentando ser "diferente" das outras pessoas com deficiência que, supostamente, não "se dedicam" o suficiente (CAMPBELL, 2009).

Com base em Campbell (2001), Wolbring (2008a) sugere que o capacitismo afeta tanto a forma como alguém se vê quanto como vê outras pessoas. Para Wolbring, o capacitismo vai além das relações entre pessoas com e sem deficiência; é uma forma de ver, entender e se relacionar com o mundo.

"O capacitismo reflete o sentimento de certos grupos e estruturas sociais que valorizam e promovem certas habilidades, como produtividade e competitividade, em detrimento de outras, como empatia, compaixão e gentileza. Essa preferência por algumas habilidades leva a rotular desvios reais ou percebidos, ou a falta de habilidades 'essenciais', como um estado diminuído de ser, justificando outros tipos de discriminação." (WOLBRING, 2008a, p. 253, tradução.)

Na visão de Wolbring, o capacitismo cria discriminações não só entre pessoas com e sem deficiência, mas também afeta a forma como as pessoas se relacionam consigo mesmas e com o mundo, levando à inferiorização de certos grupos (WOLBRING, 2008a).

Goodley também é um autor importante no debate e, em sintonia com Campbell (2009), ele argumenta que a discriminação e a auto-discriminação refletem a opressão e o sofrimento vividos por aqueles que não se encaixam nos padrões de “normalidade” e capacidade.

O capacitismo destaca a ideia de que algumas habilidades são consideradas melhores do que outras. Seguindo a linha de pensamento de Campbell (2009), Goodley alerta que o capacitismo faz com que as pessoas tentem, de forma desesperada, se encaixar em um padrão de suposta "normalidade", que valoriza corpos tidos como "capazes", "independentes", "saudáveis" e "produtivos". Isso acaba gerando discriminação, auto-discriminação, opressão e sofrimentos para quem não consegue se ajustar a esses padrões.

Em outras palavras, o capacitismo é uma forma de discriminação que coloca um "padrão ideal" de corpo e habilidades, valorizando aqueles que se encaixam nesse modelo como "superiores" e tratando as pessoas com deficiência como "menos valiosas" ou "inferiores". O problema maior é que esse pensamento afeta não só a forma como as pessoas com deficiência são vistas pelos outros, mas também como elas se veem.

A pressão para se encaixar nesse padrão faz com que muitas tentem incansavelmente "superar" ou "esconder" suas deficiências, o que gera frustração e sofrimento. Mesmo com os avanços médicos e tecnológicos disponíveis, não é possível viver como se a deficiência não existisse, por isso buscar uma vida de acordo com os padrões de "normalidade" que são socialmente impostos é uma tarefa inalcançável. Esse ciclo constante de tentar ser "normal" pode causar problemas de autoestima, saúde mental e até auto-rejeição.

Como Wolbring aponta, a sociedade tende a valorizar mais a competitividade e a suposta "produtividade" como consequência da sua estrutura de produção e consumo, isso acaba reforçando a discriminação e criando uma hierarquia de pessoas, onde aquelas que não correspondem ao padrão estabelecido são vistas como menos importantes.

O que deve ficar nítido é: a inclusão de pessoas com deficiência e o combate ao capacitismo não deve ser baseada na ideia de "superação", mas sim na valorização da diversidade humana e no respeito às diferenças. O "se" de "se você se curar" ou "se você se esforçar" não deve ser uma condição para norteamento das políticas públicas e das ações de inclusão.

Estudos sobre o capacitismo no Brasil

Até onde se sabe (sim, não se pode afirmar com certeza absoluta), a primeira vez em que se buscou traduzir o termo "ableism" para o português foi em Portugal, na Universidade de Coimbra, por Pereira (2008) em seu mestrado. A própria autora afirma que até então não havia nenhuma tradução para o termo em português.

No Brasil, o termo "capacitismo" foi encontrado pela primeira vez na literatura acadêmica em Bentes (2012), no entanto, o autor não o define, apenas o utiliza. A primeira definição do termo em português feita na literatura acadêmica brasileira (pelo menos é a que foi possível encontrar) foi em Dias (2013), que o define como:

“concepção presente no social que lê as pessoas com deficiência como não iguais, menos aptas ou não capazes para gerir as próprias vidas” (DIAS, 2013, p. 2).

Na dissertação de mestrado de Mello (2014), a autora discute a materialização do capacitismo que segundo ela se dá “através de atitudes preconceituosas que hierarquizam sujeitos em função da adequação de seus corpos a um ideal de beleza e capacidade funcional” (MELLO, 2014, p. 53-54).

Ainda de acordo com Mello (2014), o capacitismo é:

[...] uma postura preconceituosa que hierarquiza as pessoas em função da adequação dos seus corpos à corponormatividade. É uma categoria que define a forma como as pessoas com deficiência são tratadas de modo generalizado como incapazes (incapazes de produzir, de trabalhar, de aprender, de amar, de cuidar, de sentir desejo, de ter relações sexuais etc.), aproximando as demandas dos movimentos de pessoas com deficiência a outras discriminações sociais como o sexismo, o racismo e a homofobia (MELLO, 2014, p. 94-95).

De acordo com Gesser, Block e Mello (2020, p.18), o capacitismo funciona seguindo a lógica do "normal/desvio":

As capacidades normativas que sustentam o capacitismo são compulsoriamente produzidas com base nos discursos biomédicos que, sustentados pelo binarismo norma/desvio, têm levado a uma busca de todos os corpos a performá-los normativamente como “capazes”, visando se afastar do que é considerado abjeção.

Ou seja, o texto está dizendo que a sociedade tem certas ideias sobre o que é ser "normal" ou "capaz", e essas ideias vêm muito da medicina, que classifica as pessoas como "normais" ou "desviantes". Em outras palavras, a sociedade pressiona as pessoas a parecerem "capazes" para evitar preconceito ou discriminação.

Ainda nas palavras de Gesser, Block e Mello (2020, p.18), o capacitismo é:

[...] estrutural e estruturante, ou seja, ele condiciona, atravessa e constitui sujeitos, organizações e instituições, produzindo formas de se relacionar baseadas em um ideal de sujeito que é performativamente produzido pela reiteração compulsória de capacidades normativas que consideram corpos de mulheres, pessoas negras, indígenas, idosas, LGBTI e com deficiência como ontológica e materialmente deficientes.

Traduzindo, a citação diz que o capacitismo é algo que está profundamente enraizado na sociedade e influencia como tudo funciona. Ele molda as pessoas, as organizações e as instituições, afetando a forma como as pessoas se relacionam umas com as outras. Isso faz com que a sociedade valorize apenas certos tipos de habilidades e trate aqueles que são diferentes como menos capazes ou menos valiosos. Isso leva à discriminação e à exclusão dessas pessoas.

O capacitismo está tão presente em nossa sociedade e em nossos pensamentos que acaba estabelecendo uma classificação dos corpos com base em suas habilidades, mesmo em instituições e pessoas que buscam defender os direitos das minorias (IVANOVICH; GESSER, 2020). Essa visão capacitista considera as pessoas com deficiência como menos capazes ou incapazes de sentir, amar, aprender, desejar e serem desejadas, o que limita o exercício pleno de seus direitos (GESSER; BLOCK; HENRIQUE NUERNBERG, 2019).

Devemos entender a deficiência como uma das várias maneiras de existir. Como destacam Ivanovich e Gesser (2020, p.17), "[...] é necessário quebrar com os padrões normativos de independência ligados à lógica capacitista e reconhecer que as relações de dependência e interdependência fazem parte da natureza humana".

O capacitismo da pessoa com deficiência

Comentário da autora

A seguir, será abordado um assunto que eu vejo ser pouco discutido, mas que é de suma importância para a compreensão do capacitismo: o capacitismo da pessoa com deficiência. Afinal, a pessoa com deficiência é uma PESSOA, como tal também vive em um mundo capacitista, e muitas vezes reproduz discursos e práticas capacitistas.

Não estou me referindo a reprodução do capacitismo internalizado, que a pessoa tem consigo mesma, mas sim a reprodução do capacitismo em relação a outras pessoas com deficiência, seja da mesma ou de outra deficiência. E, não se trata de culpabilizar as pessoas com deficiência que são capacitistas, mas de reconhecer que o capacitismo também é presente em nossas comunidades e que é necessário desconstruí-lo.

Não reconhecer que as pessoas com deficiência também podem reproduzir discursos e ser capacitistas é ignorar a complexidade das relações sociais e a influência do capacitismo em nossas vidas. Além disso, é como se estivéssemos negando que as pessoas com deficiência também são seres humanos, com suas contradições, suas lutas e suas vivências. O fato de sermos pessoas com deficiência não nos isenta de sermos capacitistas, mas nos desafia a reconhecer e desconstruir essas práticas.

A descrição do evento a seguir ilustra bem o que estou querendo dizer...

Em 2019, o empresário Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan, gerou grande polêmica ao gravar um vídeo criticando a obrigatoriedade de instalar piso tátil e disponibilizar cadeiras de rodas motorizadas em uma de suas lojas em Chapecó (SC). No vídeo, ele mostrava o piso tátil na entrada da loja e dizia: "Olha só essa loja linda, maravilhosa. Cheguei aqui na porta e colocaram isso aqui". Hang afirmava que o piso "leva o nada ao lugar nenhum" e o chamava de "porcaria que não vale nada".

Além disso, ele questionava a necessidade de placas indicando vagas reservadas para idosos e pessoas com deficiência, referindo-se a elas como resultado de ações "populistas". Também reclamou da exigência de oferecer cadeiras motorizadas para clientes com mobilidade reduzida, argumentando que seus funcionários poderiam ajudar essas pessoas sem a necessidade desses equipamentos.

As declarações de Luciano Hang causaram indignação em diversos setores da sociedade. A Organização Nacional dos Cegos do Brasil (ONCB) emitiu uma nota oficial repudiando suas falas, destacando que "todo local privado de uso coletivo está sujeito a inúmeras regulamentações" e que as pessoas com deficiência contam com a Lei Brasileira de Inclusão para garantir seus direitos.

Eis que surge Jelres Freitas, advogado e presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB de Sumaré (SP). Ele é uma pessoa com deficiência, usuário de cadeira de rodas, e apareceu ao lado de Luciano Hang em um vídeo publicado nas redes sociais do empresário.

No vídeo, gravado durante a inauguração de uma loja em Sumaré, Jelres Freitas expressa apoio às críticas de Hang sobre a obrigatoriedade do piso tátil. Ele afirma:

"Existem barreiras muito piores do que a ausência de um piso tátil, que por vezes atrapalha as outras pessoas que utilizam cadeira de rodas ou muletas. Essas pessoas se sentem lesadas" (JELRES FREITAS, 2019).

Freitas também mencionou que, como presidente da comissão, repudiava o excesso de burocracia e que continuaria lutando para que tais exigências não fossem implementadas em sua cidade. Hang agradeceu o apoio e convidou Freitas para a inauguração da nova loja.

O jornalista Filipe Oliveira, que é cego, escreveu um artigo na Folha de São Paulo abordando o assunto. Ele destacou que pisos táteis mal projetados ou instalados de forma inadequada realmente não cumprem seu papel. Porém, em vez de culpar a exigência legal, a responsabilidade deveria recair sobre quem os instala sem o devido cuidado.

"Se muitos pisos táteis são inúteis ou perigosos, a culpa é de quem exige que o coloquem?", questiona Oliveira. Ele reforça que empresários deveriam ver essas medidas como investimentos na inclusão de clientes potenciais, e não como burocracia.

Para saber mais

O caso de Luciano Hang e Jelres Freitas ilustra bem como o capacitismo pode se manifestar entre pessoas com deficiência. Freitas, ao apoiar as críticas de Hang à acessibilidade, reproduziu discursos capacitistas que desvalorizam a importância de medidas inclusivas para pessoas com deficiência.

Comentário da autora

Vamos entender! Primeiro, temos um empresário que, por ser rico e influente, não percebe que tá envelhecendo; é como se isso não fizesse diferença porque seus privilégios o protegem das dificuldades que as pessoas mais velhas enfrentam. Ele usa suas redes sociais de forma consciente para mostrar seu incômodo com as regras de acessibilidade que são exigidas por lei e pela prefeitura de Chapecó.

Ele basicamente sugere que pessoas cegas não conseguiriam chegar à loja dele sozinhas e que, se chegassem, poderiam contar com a "ajuda" dos funcionários. Isso é capacitismo? Com certeza! Como disse o jornalista Filipe Oliveira, esse empresário dá a entender que a pessoa com deficiência "não é vista como cliente em quem vale a pena investir".

Aí entra em cena nosso "amigo" Jelres Freitas, presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB de Sumaré (SP). Ele é uma pessoa com deficiência? Sim! Usa cadeira de rodas? Sim! Tem o direito de dar sua opinião sobre o caso? Claro que tem! Mas foi isso que ele fez? Ele se posicionou como pessoa com deficiência dando sua OPINIÃO? Não! Definitivamente, não foi isso que ele fez.

No vídeo do Luciano Hang, o Jelres usou sua posição como presidente da Comissão da OAB e o fato de ser uma pessoa com deficiência para defender o empresário. Naquele momento, ele não estava apenas dando sua opinião pessoal; ele tentou dar peso ao que o empresário dizia, como se fosse o porta-voz da comunidade de pessoas com deficiência, usando sua posição e sua deficiência como garantias de que o empresário estava certo.

Foi como se dissesse: "Eu, Jelres Freitas, presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB de Sumaré (SP) e pessoa com deficiência, endosso o que Luciano Hang está falando", assumindo o papel de "embaixador", "representante" e "porta-voz" das pessoas com deficiência. Isso não foi apenas uma opinião pessoal; foi uma tentativa de usar sua posição para dar força a um argumento fraco, como se dissesse: "Se eu tô dizendo, então é verdade".

Por que estou falando disso? Pra mostrar uma forma de capacitismo que, na minha opinião, quase não é discutida: o capacitismo entre as próprias pessoas com deficiência.

Pode parecer óbvio, mas não é! Pessoas com deficiência são pessoas que crescem numa sociedade capacitista, e isso afeta não só como elas se veem, mas também como enxergam outras pessoas com deficiência. Eu sou cega e já vi muitos vídeos de pessoas influenciadoras que são cegas e que não incluem descrição de imagem, como se esses vídeos fossem voltados apenas para pessoas sem deficiência.

Uma comunidade de pessoas com deficiência muitas vezes é capacitista com outras pessoas com deficiência, porque muita gente não se preocupa em aprender sobre deficiências que não são as suas. O resultado? Pra muitas pessoas com deficiência, a luta por acessibilidade acaba sendo só pela acessibilidade que elas precisam. Cada deficiência vira um "grupo" separado, e as pessoas se juntam com quem tem a deficiência mais parecida com a delas, sem perceber que ainda têm atitudes capacitistas em relação às outras deficiências.

Quantas pessoas que usam cadeira de rodas, como o Jelres Freitas, desconsideram as necessidades de pessoas com outras deficiências? Quantas pessoas cegas não usam termos como "retardado" de forma pejorativa, perpetuando o capacitismo? Pessoas com deficiência também podem ser machistas, racistas, homofóbicas e, claro, capacitistas, porque elas também são parte dessa sociedade.

As pessoas com deficiência enfrentam o capacitismo da sociedade sem deficiência e o preconceito entre as diferentes comunidades de PCDs. É como se houvesse uma "hierarquia" das deficiências, onde cada um tenta evitar ser "a pior" na escala, repetindo o mesmo preconceito que a sociedade impõe.

O problema é que os opressores são muitos — a sociedade toda, basicamente — e as pessoas com deficiência são uma minoria que ainda se fragmenta em pequenas comunidades que perpetuam o capacitismo e lutam cada uma do seu jeito. Fica muito mais difícil organizar ações coletivas e lutar por mudanças institucionais com essa divisão. A sociedade parece muito mais unida pra oprimir do que nós, pessoas com deficiência, estamos pra lutar. Brigamos por coisas pequenas e perdemos força na luta contra quem realmente nos oprime.

Eu sou cega e, todos os dias, preciso desconstruir meus preconceitos e aprender sobre pessoas com outras deficiências, não porque sou uma pessoa "melhor", mas porque quero um mundo menos capacitista para todas as pessoas. Não só um mundo menos capacitista para pessoas cegas. Só vamos conseguir ter mais força e organização política quando conhecermos nossas diferenças, nos acolhermos como uma grande comunidade, e lutarmos por uma acessibilidade realmente universal — de dentro das nossas bolhas de pessoas com deficiência para a sociedade inteira.

Alguns exemplos de capacitismo que repercutiram na mídia

Título de notícia sobre vereadora que virou ré por injúria racial e discriminação contra estagiárias com deficiência em Porto Alegre, publicado no site g1.

Descrição da imagem: Captura de tela de uma notícia publicada no site g1, na seção 'Rio Grande do Sul'. O título da matéria destaca que uma vereadora em Porto Alegre se tornou ré por injúria racial contra um servidor e discriminação contra estagiárias com deficiência. O texto menciona que a vereadora Lourdes Sprenger (MDB) teria chamado estagiárias de 'debilóides' e alegado que elas não tinham condições de exercer suas funções. Além disso, a vereadora teria se referido ao chefe das estagiárias como 'aquele professor preto, sujo e burro', conforme denúncia do Ministério Público. A matéria foi escrita por João Pedro Lamas e publicada em 24 de abril de 2024.

Comentário da autora

Essa notícia é já ilustra bem o que será discutido a seguir: exemplos de capacitismo na mídia. O propósito é mostrar como o capacitismo está presente em diversas esferas e também mostrar como argumentos capacitistas são usados para justificar a exclusão.

Sobre a "querida" (contém muita ironia) vereadora Lourdes Sprenger, vamos aos fatos de acordo com o G1...

Caso vereadora Lourdes Sprenger

  1. Denúncia e Aceitação pela Justiça:
    • A vereadora de Porto Alegre, Maria de Lourdes dos Santos Sprenger (MDB), se tornou ré na Justiça do Rio Grande do Sul.
    • Foi acusada de injúria racial e discriminação contra servidor e estagiárias com deficiência.
    • Denúncia do Ministério Público (MP) foi aceita pela Justiça em 15 de abril de 2024.
  2. Acusações Contra a Vereadora:
    • Ofensas racistas e intolerância religiosa proferidas contra um servidor público negro da Câmara de Vereadores.
    • Falas discriminatórias contra três estagiárias com deficiência.
    • Vereadora chamou o servidor de "professor preto, sujo e burro" e fez menções a sua religião de matriz africana.
    • Chamou as estagiárias de "debilóides" e afirmou que não tinham condições para as funções.
  3. Investigação da Polícia Civil:
    • O conflito teria surgido porque a vereadora considerava as estagiárias inaptas para o trabalho, enquanto o chefe delas queria mantê-las nas posições.
    • O servidor público acabou exonerado em outubro de 2023 por determinação da vereadora.
  4. Defesa da Vereadora:
    • Lourdes Sprenger nega as acusações e afirma que não há provas, classificando as denúncias como "disse-me-disse".
    • Alega que as denúncias vêm de pessoas que ela exonerou por divergências administrativas.
    • Pretende apresentar defesa jurídica com auxílio de seu advogado.
  5. Posição da Câmara de Vereadores:
    • A Câmara de Vereadores aguarda o desfecho do processo na Justiça para adotar medidas, se necessário.
    • O presidente da Câmara, Mauro Pinheiro (PP), afirmou que até 23 de abril de 2024, não havia denúncias protocoladas no Legislativo.
  6. Repetição dos Incidentes:
    • As situações de injúria racial e discriminação teriam se repetido ao longo de 2023.
  7. Histórico da Vereadora:
    • Lourdes Sprenger é vereadora eleita com a bandeira da causa animal, no terceiro mandato.
    • Natural de Gravataí, é contadora e trabalhou como auditora em uma estatal.

Comentário da autora

O que temos aqui? Supostamente...

  1. Uma vereadora que, supostamente, considerava três estagiárias com deficiência como "inaptas" para o trabalho e o seu "grande argumento" foi discriminá-las por um ano inteiro chamando-as inclusive de "debilóides".
  2. Essa mesma vereadora, supostamente, teria chamado um servidor de "professor preto, sujo e burro" e feito menções à sua religião de matriz africana. Tudo isso porque ele "ousou" discordar dela e querer manter as estagiárias em seus postos de trabalho.

Vamos imaginar que tudo isso seja, supostamente, verdade. Temos aqui uma vereadora, uma servidora pública, que teoricamente deveria representar a população COMO UM TODO, que teoricamente deveria ser guardiã da constituição e dos direitos de TODAS as pessoas e que, não podemos esquecer, é uma pessoa pública, que é paga com o dinheiro PÚBLICO.

O que deveria ser bem óbvio, mas que muita gente parece não entender, é que não importa o que você pensa ou acredita, a lei é clara: discriminação é crime. Ponto. Além disso, se você é uma pessoa pública que exerce um cargo público, como o de uma vereadora, você é pago com o dinheiro público de impostos que TODAS as pessoas pagam.

No meio desses impostos, tem o dinheiro de pessoas com deficiência, de pessoas pretas, de pessoas com religiões de matriz africana, de familiares e amigos dessas pessoas, de pessoas LGBTQIA+, de pessoas idosas, de pessoas pobres, de pessoas de todas as camadas sociais. O governo não devolve o dinheiro de pessoas que são discriminadas por ele e seus representantes, também não devolve o dinheiro de pessoas que não concordam com a discriminação.

Portanto, não se trata de "caridade" ou "bondade" de uma vereadora ou de qualquer outra pessoa pública, mas de um DEVER. O governo, teoricamente, é pago para zelar e garantir os direitos e acesso a serviços de todas as pessoas, quando isso não acontece, temos um ROUBO. Sim, porque é isso que é: roubo.

Eu contribuinte, pago você governante para legislar, fiscalizar e garantir que haja uma estrutura social que não tolere a discriminação, que garanta a igualdade de oportunidades, que promova a inclusão e a diversidade, que provisione serviços de saúde, educação, transporte, moradia, trabalho, lazer, cultura, segurança, assistência social, previdência, entre outros, para todas as pessoas com qualidade e de forma acessível. O que eu, contribuinte, recebo em troca? Uma estrutura sucateada, negligente, discriminatória, excludente, violenta, corrupta e que ainda me culpa por isso.

A vereadora Lourdes Sprenger, supostamente, não só falhou em cumprir com seu dever de representar a população, mas também falhou em cumprir com a lei, que é clara: discriminação é crime. E, se ela não entendeu isso, a Justiça está aí para explicar, ou pelo menos deveria estar. Isso não tem haver com "humanidade" ou "boa fé" ou "caridade", mas com a LEI. Ela recebe um salário para cumprir com a LEI, salário pago com o dinheiro de TODAS as pessoas, inclusive de pessoas com deficiência, de pessoas pretas e de pessoas com religiões de matriz africana.

Existem governantes que entendem o povo como subalterno, se sentem superiores e se veem como "donos" do poder, como se fossem "deuses" que podem decidir quem come e quem passa fome, quem tem acesso a serviços e quem não tem, quem tem direitos e quem não tem, quem é humano e quem não é. Na verdade são apenas pessoas que foram eleitas e que quando não cumprem com seus deveres, quando subvertem a máquina pública para o seu benefício próprio, quando discriminam e excluem, quando violam os direitos humanos, quando cometem crimes, devem ser responsabilizadas e punidas porque estão ROUBANDO a sociedade descaradamente e dizendo para a lei: "otária, eu faço o que eu quiser".

Criança com deficiência é deixada na escola enquanto colegas foram a passeio

Título de notícia sobre menino com deficiência deixado na escola enquanto colegas foram a um passeio, publicado no site Estadão.

Descrição da imagem: Captura de tela de uma notícia publicada no site Estadão, na seção 'Comportamento'. O título destaca que um menino com deficiência foi deixado na escola enquanto os colegas foram para um passeio. A reportagem menciona que a mãe de João, de 9 anos, relatou o caso nas redes sociais, o que gerou grande repercussão e levou a uma resposta da Secretaria de Educação. O caso ocorreu em Belo Horizonte, onde João, que tem paralisia cerebral e usa cadeira de rodas, foi deixado na escola enquanto a turma foi ao cinema, apesar de sua mãe ter autorizado sua participação. A mãe expressou frustração com a falta de inclusão e pediu maior capacitação dos profissionais da área.

  1. O Caso:
    • João, um menino de 9 anos com paralisia cerebral que usa cadeira de rodas, foi deixado na escola enquanto os colegas foram ao cinema.
    • A mãe, Adriane Cruz, relatou o ocorrido nas redes sociais, mencionando que a escola alegou que João não iria gostar do passeio, mesmo após a mãe afirmar que ele gostava e podia participar.
  2. Repercussão e Resposta da Escola:
    • João ficou circulando pelos corredores da escola das 7h às 11h20, acompanhado por seu cuidador.
    • A mãe descobriu que João não participou do passeio ao ser informada pela responsável do transporte escolar.
    • Com a repercussão do relato no Facebook, que teve mais de 3 mil compartilhamentos, a Secretaria de Educação de Belo Horizonte se reuniu com a escola e pediu desculpas.
  3. Contexto de Inclusão na Escola:
    • Adriane relata que, desde que João está na atual escola, ele não foi convidado para participar de eventos, incluindo a festa junina.
    • A escola justificou a exclusão de João com motivos como "está frio", "ele grita" e "não sabem qual será a reação dele".
  4. Atuação da Mãe e Associação AMI:
    • Adriane é presidente da Associação Mães que Informam (AMI) e afirma que casos de exclusão escolar não são pontuais, mas sim constantes e diários.
    • Ela defende que o problema está na falta de capacitação adequada dos profissionais da educação para lidar com estudantes com deficiência.
  5. Resposta da Secretaria de Educação:
    • A Secretaria de Educação de Belo Horizonte afirmou que o ocorrido não reflete a política de inclusão da rede municipal.
    • Destacou que todas as escolas são orientadas a garantir a participação de estudantes com deficiência.
    • A rede possui 46 salas de Atendimento Educacional Especializado (AEE) e oferece treinamentos constantes para monitores de apoio.
  6. Críticas e Demandas:
    • Adriane enfatiza que os profissionais da educação precisam de capacitação adequada.
    • Ela quer que as mães sejam ouvidas e que medidas efetivas sejam tomadas para melhorar a inclusão escolar, além de destacar que a inclusão deve ir além do aprendizado acadêmico e incluir aspectos culturais e sociais.

Comentário da autora

E se eu te contar que, por aí, tem professores, gestores e outras pessoas que trabalham em escolas e acham que o que aconteceu nesse caso é completamente "normal" e até certo? Isso já me aconteceu tantas vezes que eu poderia escrever um artigo inteiro só com essas histórias. Vou contar uma:

Em 2006, quando eu tinha uns 10, 11 anos, estava no 6º ano (a antiga 5ª série), em Barreiras, Bahia, minha cidade natal. Estudava numa escola municipal chamada Centro Educacional Sagrado Coração de Jesus, e odiava aquele lugar. Era meu primeiro ano lá e, quando chegou o Sete de Setembro, a época dos desfiles na avenida principal da cidade, uma professora veio conversar comigo.

Ela disse que eu não ia desfilar com a turma. Mesmo sendo criança, perguntei por quê, e ela me disse que “não dava”, porque eu não tinha como andar em linha reta, que eu “costurava rua”. Fiquei arrasada. Na minha família, tinha um monte de professoras e policiais militares, todos desfilavam na avenida, e o resto da família ia ver. Era um evento pra gente.

Contei pra minha tia que não ia desfilar, já meio conformada, e ela perguntou o motivo. Repeti o que a professora disse, na maior inocência. A casa virou um tribunal. Minhas tias discutiam, algumas achando que a professora tinha razão, outras não. Minha mãe e meus avós ficaram revoltados.

No dia seguinte, minha mãe foi pra escola falar com a coordenadora e a diretora. Elas discordaram do que a professora disse, mas queriam ouvir a versão dela, então chamaram a professora na direção. Ela repetiu tudo o que me disse e ainda completou: “Mãe, ela precisa entender que ela não é normal...”, falou como se estivesse pedindo açúcar pro café.

Minha mãe quase partiu pra cima da professora, e depois de muito barraco, chegou a um acordo com a coordenadora e a diretora: eu ia desfilar sim, mas com minha mãe do lado. E foi o que aconteceu. Tudo isso pra andar uma avenida no sol quente no Sete de Setembro, coisa que outros estudantes fazem quase que obrigados.

Esse foi só um episódio. Perdi a conta de quantas feiras do livro, feiras de ciência, gincanas eu fiquei de fora, literalmente de fora, em casa, vendo novela porque era "dispensada" das aulas nesses dias.

Assim como comigo, a história do João, um menino de 9 anos com paralisia cerebral que ficou na escola enquanto os colegas foram a um passeio, mostra como a sociedade e as instituições ainda falham em reconhecer a humanidade das pessoas com deficiência.

As escolas públicas são financiadas por todo mundo, incluindo as pessoas com deficiência e suas famílias. Isso implica que todas as crianças deveriam ter os mesmos direitos, sem exceção. Quando uma escola exclui uma criança de um passeio, ela falha não só com a criança e sua família, mas também com o princípio de igualdade que deveria guiar os serviços públicos, ela falha com a sociedade.

As escolas públicas têm muitos problemas, mas o que aconteceu com João escancara como as falhas do sistema acabam pesando ainda mais nas costas das pessoas com deficiência. Enquanto alunos sem deficiência são cobrados com frases como "você tem que estudar", "vai virar vagabundo", os alunos com deficiência enfrentam um tratamento diferente: são excluídos com desculpas como “não temos formação”, “não temos recursos”, “ele não pode participar”. Esse duplo padrão é uma prova gritante da falta de compromisso com a inclusão e reflete uma prática constante de negligência e discriminação.

Essa lógica leva a um apoio forçado para “escolas especiais”, uma forma de educadores evitarem se atualizar e lidar com a inclusão.

Mas talvez o mais doloroso seja a desumanização das pessoas com deficiência. A escola não viu João como um garoto de 9 anos que queria se divertir no cinema com os colegas, mas como um problema. Esse tipo de desumanização é uma forma de violência que vai além da falta de formação ou recursos; é uma falha em reconhecer essas pessoas como seres humanos plenos.

A inclusão vai além de uma obrigação legal, é sobre reconhecer a dignidade de todas as pessoas. O que João viveu não se resolve só com treinamentos ou regras, mas com uma mudança profunda na forma como a sociedade vê as pessoas com deficiência, reconhecendo que elas merecem respeito, acolhimento e participação plena.

Caso da professora gravada dizendo: "Isso é falta de uma boa surra" para criança com autismo

Título de notícia sobre professora gravada dizendo 'isso é falta de uma boa surra' para criança com autismo em SP, publicado no site do Fantástico, g1.

Descrição da imagem: Captura de tela de uma notícia publicada no site g1, na seção Fantástico. O título destaca que uma professora foi gravada dizendo 'isso é falta de uma boa surra' para uma criança com autismo em São Paulo. A matéria menciona que o Fantástico mostrou vídeos de agressão em uma escola estadual de Sales Oliveira, SP, onde pais descobriram o que ocorria por meio de gravações de áudio e vídeo que captaram gritos e ameaças dirigidos aos alunos.

  1. Resumo do Caso Apresentado no Fantástico:
    • O programa Fantástico exibiu dois casos de agressões de educadores contra alunos com deficiência em escolas de São Paulo.
    • Em um dos casos, os pais de um menino de 12 anos com autismo descobriram que ele era humilhado em sala de aula após colocarem um gravador na mochila do filho.
  2. Detalhes da Agressão:
    • A gravação captou gritos de uma professora, que disse frases como: “Isso é falta de tomar uma boa surra, viu menino? Se você fosse meu filho, você não teria mais pernas porque eu tinha quebrado as duas!”
    • As gravações foram feitas na sala de aula de uma escola particular na Zona Norte de São Paulo.
  3. Contexto da Situação:
    • Os pais perceberam que o filho resistia a ir à escola, mas não explicava o motivo.
    • A situação se agravou quando o menino foi para o sexto ano, com mais professores, aumentando as queixas sobre o comportamento dele na escola.
  4. Reação dos Pais e Ações Legais:
    • Após ouvir as gravações, os pais registraram um boletim de ocorrência por discriminação por motivo de deficiência contra a diretora e moveram uma ação indenizatória contra a diretora e a escola.
    • Os pais destacaram o impacto emocional, relatando noites sem dormir e dificuldades de falar sobre o assunto.
  5. Resposta da Escola e Ações Futuras:
    • A diretora Andrea Claudia Camargo, que foi mencionada nas gravações, não respondeu aos pedidos de entrevista do Fantástico.
    • A produção do programa tentou contato com a secretária e um advogado da escola, sem sucesso.
  6. Impacto no Aluno e na Família:
    • A família relatou medo e desconfiança de deixar o filho em instituições após o ocorrido.
    • O aluno foi transferido para uma escola pública, onde está em fase de adaptação.

Comentário da autora

Esse caso traz à tona uma realidade dolorosa, mas que precisa ser discutida: a violência e o desprezo que muitas crianças com deficiência enfrentam nas escolas, instituições que, em vez de serem espaços de acolhimento e desenvolvimento, acabam se tornando cenários de abuso e discriminação. Uma professora, paga para educar e proteger, foi flagrada dizendo que o comportamento de uma criança com autismo era “falta de uma boa surra”. Ela ainda afirmou que, se fosse seu filho, ele “não teria mais pernas porque ela teria quebrado as duas”. Esse tipo de fala, além de ser uma violência verbal, revela o quão desumanizador pode ser o ambiente escolar para alunos com deficiência.

O que temos aqui? Uma educadora que deveria ser uma figura de confiança, transformando-se em agressora. E, assim como nos casos mencionados anteriormente, essas atitudes não são incidentes isolados; são reflexos de um sistema que falha em proteger e respeitar seus alunos mais vulneráveis. É fácil imaginar que, por trás de cada uma dessas crianças, existem famílias que confiaram na escola para cuidar e ensinar seus filhos, e que, em troca, receberam humilhação, medo e traumas.

Esses episódios mostram que a discriminação contra pessoas com deficiência vai muito além da falta de formação ou recursos. Ela está enraizada em uma falta de empatia, na desumanização constante, onde se vê a deficiência antes da pessoa. Essa professora, assim como a vereadora que chamava suas estagiárias de “debilóides” e um servidor de “preto, sujo e burro”, usou de sua posição para oprimir e destruir a autoestima de quem deveria proteger.

A verdade é que, para muitas pessoas que estão em posições de liderança, como professores e gestores escolares, cumprir a lei e respeitar os direitos humanos não é uma questão de compromisso, mas sim um incômodo que muitas vezes tentam contornar com abusos e violência. As escolas, sejam públicas ou particulares, deveriam ser um reflexo de uma sociedade que inclui e respeita a diversidade. Mas, quando uma professora de uma escola particular vê em um aluno com autismo apenas um “problema” que merecia “uma surra”, isso expõe um abismo gigantesco na forma como tratamos a inclusão.

Essa história, como tantas outras, não deveria ser vista como uma exceção ou um caso isolado. É um sintoma de uma doença maior que afeta o nosso sistema educacional e a nossa sociedade. A inclusão não é um favor, e a proteção das crianças, especialmente das mais vulneráveis, é um dever de todos. É preciso uma mudança cultural profunda, que vá além de simples treinamentos, e que transforme de fato a maneira como vemos e tratamos as pessoas com deficiência. Enquanto isso não acontecer, as histórias de agressões, exclusões e violências continuarão sendo contadas, e o sistema seguirá falhando com as famílias que ele deveria servir.

Considerações finais

O capacitismo, forma de discriminação que afeta diretamente pessoas com deficiência, é uma das manifestações de preconceito mais difundidas e menos reconhecidas na sociedade. Este artigo buscou explorar o capacitismo em sua complexidade, revelando como ele está profundamente enraizado em ideias históricas de inferioridade, reforçadas por estereótipos que se perpetuam até os dias atuais. Ao tratar a deficiência como algo a ser corrigido ou superado, o capacitismo desumaniza e exclui, criando barreiras que vão além da acessibilidade física, impactando também a autoestima, as oportunidades e o direito de existir plenamente como parte da diversidade humana.

A análise apresentada evidencia que o capacitismo não é um fenômeno isolado; ele está intimamente ligado a outras formas de discriminação, como racismo, machismo e eugenia, todos fundamentados na crença equivocada de que alguns corpos e habilidades são superiores a outros. A falta de conhecimento e a simplificação do preconceito em um termo genérico como "discriminação" dilui as especificidades do capacitismo, dificultando o combate eficaz a essa forma de exclusão. Nomear o capacitismo e compreender suas raízes é essencial para desenvolver políticas e ações que realmente promovam inclusão e respeito.

As manifestações de capacitismo se estendem desde atos cotidianos de exclusão até políticas e práticas institucionais que perpetuam a marginalização de pessoas com deficiência. Para avançar na luta contra o capacitismo, é crucial que a sociedade adote uma abordagem que vá além da mera punição legal e se comprometa com a transformação cultural e educacional. Isso envolve questionar discursos que normalizam a exclusão, denunciar práticas eugenistas contemporâneas e promover uma educação inclusiva que valorize todas as pessoas em suas singularidades.

Reconhecer o capacitismo como uma discriminação específica e grave é o primeiro passo para mudar atitudes e construir uma sociedade mais justa e igualitária. Somente ao entender e combater os preconceitos que estão na base do capacitismo, poderemos criar um ambiente em que a deficiência seja vista como uma característica da diversidade humana e não como um problema a ser resolvido. O desafio é grande, mas essencial: precisamos redefinir a forma como enxergamos e tratamos as pessoas com deficiência, promovendo a verdadeira inclusão que respeite e valorize a diversidade.

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