
Capacitismo: o que significa?

Apresentação
Discriminações e preconceitos permeiam diversos aspectos da sociedade e, com frequência, são tratados de maneira simplificada, como se fossem um único fenômeno. Muitas pessoas acreditam que termos como racismo, machismo, capacitismo, transfobia, entre outros, poderiam ser resumidos simplesmente como "preconceito". No entanto, essa visão superficial ignora as nuances e especificidades de cada forma de discriminação. Entre elas, destaca-se o capacitismo, foco central deste artigo, por ser uma das formas de discriminação mais presentes e menos discutidas. O capacitismo, entendido como preconceito contra pessoas com deficiência, tem suas raízes em estereótipos de inferioridade e ideologias historicamente associadas à eugenia.
O capacitismo é uma forma de discriminação que, além de ser invisibilizada, carrega a ideia de que a deficiência é algo a ser corrigido ou eliminado, em vez de ser vista como parte da diversidade humana. Esse preconceito afeta diretamente a vida de milhões de pessoas com deficiência, limitando seu acesso a direitos básicos e perpetuando a exclusão social. Ao longo deste texto, a complexidade dessa forma de discriminação será explorada em profundidade, destacando como está relacionada com a criação e perpetuação de estereótipos e preconceitos.
Assim como na física, onde a observação de um fenômeno depende do referencial adotado, a percepção sobre a deficiência e o capacitismo também varia conforme os contextos culturais, sociais e históricos. A falta de compreensão sobre o capacitismo e suas particularidades frequentemente leva à simplificação do tema, desconsiderando suas raízes históricas e os impactos únicos que gera. O presente artigo visa desmistificar o capacitismo, nomeando-o corretamente e analisando suas manifestações e consequências.
Para combater essa discriminação de forma eficaz, é necessário mais do que generalizações. É fundamental entender as origens do capacitismo, como ele se relaciona com outras formas de discriminação e o que é preciso fazer para enfrentá-lo. Com isso, busca-se promover uma reflexão profunda sobre a necessidade de uma abordagem mais específica e consciente, que valorize a diversidade humana em todas as suas formas.
Observação: Este artigo possui um pré-requisito para o entendimento completo do conteúdo. Esse pré-requisito é a leitura do artigo "Deficiência: o que significa?".
Por que usar uma palavra diferente?
Muitas pessoas acham que não há necessidade de criar palavras distintas para diferentes formas de preconceito, como machismo, racismo, capacitismo, transfobia, homofobia e lesbofobia. Para essas pessoas, tudo isso seria apenas "preconceito", e a luta contra ele deveria ser unificada, garantindo oportunidades iguais para todas as pessoas. De acordo com esse pensamento, não haveria necessidade de termos diferentes para cada tipo de discriminação.
No entanto, esse argumento, embora comum, ignora as diferenças importantes entre cada forma de preconceito. Assim como existem várias engenharias (civil, computação, ambiental, etc.) que compartilham uma base comum, não se pode simplificar chamando todas apenas de "engenharia". Isso porque, mesmo com algumas semelhanças, cada uma possui seu campo específico de atuação e impacto.
Da mesma forma, cada tipo de discriminação tem origens e consequências próprias. Simplificar tudo como "preconceito" desvaloriza as particularidades de cada uma dessas formas de exclusão, que afetam as pessoas de maneiras distintas. Nomear essas formas separadamente é essencial para entender como ocorrem e como combatê-las de maneira eficaz.
Não é possível abordar o capacitismo, uma forma de discriminação contra pessoas com deficiência, sem compreender antes o que são preconceito, discriminação e estereótipo. Esses conceitos formam a base para a criação dos termos específicos de cada tipo de discriminação, como demonstra Joaquim (2006) em seu estudo sobre a relação entre igualdade e discriminação.
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Preconceito: Base Ideológica
Preconceito é uma ideia ou crença formada antes de conhecer algo ou alguém de verdade. Essas ideias se baseiam em generalizações, não em fatos, e costumam ser originadas por estereótipos. O preconceito distorce a visão de mundo, levando as pessoas a agirem sem questionar essas crenças.
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Estereótipos: Simplificações Prejudiciais
Os estereótipos são ideias simplificadas e generalizadas sobre um grupo de pessoas. Eles reforçam o preconceito ao transformar uma característica específica em uma "verdade" absoluta para todas as pessoas daquele grupo, perpetuando visões distorcidas.
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Discriminação: O Preconceito em Prática
A discriminação é a prática do preconceito e dos estereótipos. Ela se manifesta por meio de ações ou omissões que prejudicam pessoas e violam seus direitos, como quando alguém é impedido de conseguir um emprego por causa de sua cor ou gênero, ou quando espaços não são adaptados para pessoas com deficiência. Esses atos discriminatórios ampliam as desigualdades sociais.
Fonte: Elaborado pela autora com base em Joaquim (2006, p. 1).
Preconceito, estereótipos e discriminação formam um ciclo que perpetua a desigualdade social. Para quebrar esse ciclo, é necessário enfrentar tanto as ações visíveis quanto as ideias e crenças erradas que as sustentam.
O que a lei diz sobre isso?
A Constituição brasileira define claramente a discriminação como ilegal e prevê penas para quem a pratica:
A Lei 7.716/89, atualizada pela Lei 9.459/97, estabelece como crime a discriminação por motivos de raça, cor, religião ou origem.
O Código Penal (art. 140, § 3º) prevê penas de 1 a 3 anos de reclusão e multa para injúria envolvendo elementos como raça, cor, etnia, religião ou origem.
Essas disposições legais mostram que a violação de direitos por meio de discriminação, seja em forma de ação ou omissão, é uma consequência direta de preconceitos baseados em estereótipos.
Savazzoni (2015) observa que:
"A discriminação e o preconceito revelam como a humanidade ainda é limitada em seu entendimento, surgindo da sensação de superioridade de alguns indivíduos sobre outros, apoiada em conceitos econômicos, sociais, religiosos e até distorções científicas." (SAVAZZONI, 2015, p. 40)
A discriminação, portanto, não se limita às situações legais; ela também está enraizada em fatores culturais, históricos e sociais. No caso do capacitismo, além das violações legais, há estereótipos que impõem limitações injustas sobre o que pessoas com deficiência podem realizar.
Dada a complexidade da discriminação, é essencial utilizar termos específicos para nomear diferentes formas de preconceito e discriminação. A generalização desses fenômenos pode impedir uma compreensão aprofundada das suas causas e consequências. A diversidade de terminologias reflete a necessidade de desenvolver estratégias mais eficazes e precisas de combate e conscientização (Brown & Williams, 2020).
No contexto das pessoas com deficiência, o capacitismo é uma das formas de discriminação mais comuns e menos conhecidas. Nomear o capacitismo é essencial para dar visibilidade a essa questão e promover ações específicas de combate. Embora estratégias generalistas tenham seu valor, é crucial reconhecer as particularidades de cada forma de discriminação para que possamos combatê-las de forma eficaz.
As relações da eugenia com o capacitismo
A eugenia é uma teoria surgida no século XIX que propunha a suposta "melhoria" da humanidade por meio da seleção de características consideradas desejáveis e da eliminação das consideradas indesejáveis. Foi usada para justificar políticas de esterilização forçada, segregação e extermínio de pessoas vistas como "inferiores" pelos que acreditavam nessa teoria.
Embora a palavra "eugenia" tenha sido criada por Francis Galton em 1865, práticas eugênicas já eram observadas na humanidade desde os tempos mais remotos da história. A eugenia possui uma relação intrínseca com o racismo, o capacitismo, o sexismo e outras formas de discriminação, pois todas essas ideias partem do princípio de que certas pessoas são superiores a outras.
No que se refere ao capacitismo, a eugenia representa um estágio extremo em sociedades que consideram a deficiência um problema a ser eliminado. Historicamente, a eugenia foi utilizada para justificar a esterilização forçada de pessoas com deficiência, sua segregação em instituições e sua exclusão social. A eugenia é uma forma extrema de capacitismo, que visa eliminar as pessoas com deficiência da sociedade em vez de promover inclusão e acessibilidade.
A Alemanha nazista é um dos exemplos mais notórios de discriminação eugênica. Supostamente embasado pela ciência, o regime nazista implementou políticas eugenistas, incluindo esterilizações forçadas a partir de 1933, para eliminar genes considerados indesejáveis (AUGUSTIN, 2012).
"Hitler enxergava as pessoas com deficiência como obstáculos ao seu projeto de sociedade, e assim surgiu o projeto Aktion T4, incorretamente apelidado de 'eutanásia', que de 'morte tranquila' não tinha nada." (Artigo Deficiência: o que significa?, tópico 2: História da Deficiência, VI, Segunda Guerra Mundial)
Iniciado em 1939, o Aktion T4 visou a eliminação em massa de idosos, pessoas com deficiência e bebês avaliados por equipes médicas. Aqueles considerados “fracos”, segundo essa lógica perversa, recebiam doses letais de drogas ou eram abandonados. Para os nazistas, essas eram "vidas que não mereciam ser vividas". O programa, infame, rapidamente se expandiu para outras áreas da sociedade (GOLDIM, 1998).
O extermínio de pessoas com deficiência foi realizado em campos de concentração disfarçados de clínicas psiquiátricas, enquanto bebês eram mortos nos próprios hospitais em que nasciam. Roney Cytrynowicz (1995, p. 217) destaca:
"A rigor, a primeira câmara de gás foi utilizada contra pacientes de um hospital psiquiátrico no programa nazista denominado 'eutanásia', que matou cerca de 100 mil alemães classificados como 'doentes mentais e incuráveis', incluindo epiléticos, surdos, cegos, pessoas com lábio leporino, além de indivíduos considerados 'associais' e judeus."
Esses trechos demonstram como a eugenia fundamentou o ideário nazista, levando a discriminação às últimas consequências. Ideias de "inferioridade", "fraqueza", "degeneração" e "raça pura" custaram a vida de milhões de pessoas.
Apesar de muitos acreditarem que pensamentos eugenistas desapareceram com o fim da Segunda Guerra Mundial, eles ainda persistem. Atualmente, discursos eugenistas são proferidos por figuras públicas e acadêmicas que alegam preocupar-se com a "qualidade de vida da população". Um exemplo contemporâneo é o biólogo e escritor Richard Dawkins, que em 2020 expressou opiniões controversas, defendendo a eugenia.
Richard Dawkins defende a eugenia em 2020

Descrição da imagem: Print de um tweet de Richard Dawkins, datado de 16 de fevereiro de 2020, com um texto em inglês que, em tradução livre, afirma: “apesar da eugenia ser condenável do ponto de vista ideológico, político e moral, não devemos concluir que ela não funciona; ela funciona para cavalos, vacas, porcos, cachorros e rosas.”
Em 2014, o biólogo Richard Dawkins já havia feito outra declaração controversa, afirmando que seria “imoral” ter um bebê com Síndrome de Down, o que gerou grande indignação. Para quem deseja ler a matéria completa, acesse: Richard Dawkins diz que ter bebê com Down é imoral.
Dawkins é conhecido por seus livros e por ser um dos maiores defensores do ateísmo, travando debates acirrados com religiosos. Isso torna essencial separar a ciência dos cientistas. A ciência busca replicar resultados, contestar ideias e corrigir conceitos equivocados, como ocorreu com a eugenia e a frenologia. Já cientistas, como qualquer pessoa, têm suas próprias opiniões, que nem sempre refletem a ciência como um todo.
A opinião de um cientista não deve ser tomada como verdade absoluta. A influência de Dawkins pode legitimar ideias extremistas, oferecendo suporte a discursos preconceituosos com uma aparente base científica. Por isso, é fundamental que a sociedade esteja atenta e questione essas influências.
O divulgador científico Emílio Garcia, através do canal de YouTube BlablaLogia, abordou as incoerências nos discursos de Dawkins e destacou a importância de manter vigilância contra ideias eugenistas.
Transcrição do vídeo de Emílio Garcia sobre Richard Dawkins
A transcrição do que foi dito no vídeo dele está a seguir. Para quem deseja assistir o vídeo completo, acesse o link: Richard Dawkins e a eugenia.
(00:00) E aí, galera! Tudo bem com vocês? Quem fala aqui é Emílio Garcia do canal “Notícias Científicas da Semana”. Hoje vamos falar sobre Dawkins falando besteira no Twitter. No primeiro tweet dele, Dawkins traz um tema muito controverso na biologia e na nossa sociedade: a eugenia. Em uma tradução livre, no tweet ele diz que, apesar da eugenia ser condenável do ponto de vista ideológico, político e moral, não devemos concluir que ela não funciona. Ele afirma que, claro, ela funciona, baseando-se no fato de que ela funciona com cavalos, vacas, porcos, cachorros e rosas. Se funciona com esses organismos, por que não funcionaria com humanos? Ele termina o tweet dizendo: "fatos ignoram a ideologia". Essa frase é fundamental para a discussão de hoje.
(00:38) Richard Dawkins é um biólogo formado pela Universidade de Oxford. Além de sua graduação, ele também fez mestrado e doutorado na mesma instituição. Seus primeiros trabalhos foram na área de etologia, estudando o comportamento animal e como os animais tomam decisões. Foi com esses primeiros trabalhos que ele foi contratado por uma universidade na Califórnia, onde continuou desenvolvendo suas pesquisas como etólogo. Esses trabalhos o levaram de volta a Oxford, agora como professor. Em Oxford, ele começou a explorar biologia evolutiva, além da etologia.
(01:37) No entanto, Dawkins é mais conhecido do grande público por seu livro de 1976, "O Gene Egoísta". Nele, ele popularizou conceitos da evolução, traduzindo-os para um público leigo. Ele introduziu a ideia de que o gene é a unidade central da seleção natural. Curiosamente, Dawkins também criou o termo “meme” neste livro, que ele definiu como uma unidade de informação replicável, semelhante ao gene na genética, mas que se espalha de cérebro em cérebro ou de um meio de armazenamento para outro, como de livro para livro.
(02:14) Dawkins continuou discutindo a evolução em vários livros, como "O Fenótipo Estendido" e "O Relojoeiro Cego". Neste último, ele critica a ideia de que é necessária uma entidade superior para criar organismos complexos. Nos últimos anos, ele ficou mais famoso por sua defesa do ateísmo, principalmente com seu livro "Deus, um Delírio", onde ele afirma que um criador sobrenatural não existe e que a fé religiosa é uma ilusão, podendo ser perigosa. Este livro foi traduzido para 35 idiomas e vendeu milhões de cópias.
(03:26) Apesar de ser lembrado como um crítico da religião, não podemos esquecer que Dawkins é um biólogo respeitado e defensor da teoria da seleção natural de Darwin. É importante discutir isso porque o darwinismo e a eugenia estão intimamente ligados. Embora o termo "eugenia" tenha sido cunhado no século XIX, práticas semelhantes já eram comuns em várias civilizações antigas, como os gregos, celtas e povos nativos da América do Sul, que eliminavam pessoas deficientes ou doentes para favorecer uma sociedade mais forte.
(03:59) O termo "eugenia" foi cunhado por Francis Galton, primo de Charles Darwin, em 1865. Galton foi diretamente influenciado pelo livro de Darwin "A Origem das Espécies". No seu livro, Galton define a eugenia como o estudo dos agentes sob controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais de futuras gerações, física ou mentalmente. Ele acreditava que a inteligência era hereditária, não fruto do ambiente, e defendeu a eugenia positiva, que promovia casamentos seletivos para aumentar a inteligência.
(05:09) As ideias de Galton foram elogiadas pela comunidade científica da época, com a revista Nature publicando artigos apoiando suas teorias. A partir desse conceito, ele propôs que a inteligência fosse promovida por meio de cruzamentos seletivos, assim como já era feito empiricamente com plantas e animais, como o milho e as vacas.
(06:15) Darwin foi uma influência significativa para Galton, explicando que a seleção artificial era uma maneira de entender a seleção natural. A seleção artificial é quando os humanos escolhem características em animais e plantas que desejam, promovendo cruzamentos entre aqueles que possuem tais características. Galton aplicou esse conceito aos seres humanos, sugerindo que características hereditárias poderiam ser selecionadas da mesma forma.
(07:23) As ideias de Galton se espalharam globalmente, especialmente em uma época de crescimento populacional descontrolado nas classes mais pobres na Inglaterra. A combinação da teoria da seleção natural e o aumento do conhecimento em genética criou a preocupação de que a população poderia sofrer uma degeneração biológica.
(08:37) Com o crescimento da eugenia como prática científica, várias sociedades ao redor do mundo começaram a adotar essas ideias, incluindo o Brasil e os Estados Unidos. No entanto, a eugenia ganhou destaque trágico no regime nazista, com leis que previam a esterilização e extermínio de pessoas com deficiências físicas ou mentais para impedir que essas características fossem transmitidas a gerações futuras.
(09:49) Após a Segunda Guerra Mundial, a eugenia negativa, que promovia a eliminação de características indesejadas, continuou em países como Suíça, Finlândia, Dinamarca, Noruega e Suécia, onde o processo de esterilização compulsória se manteve até a década de 1970.
(10:22) Hoje, as novas tecnologias de manipulação genética reacendem o debate sobre eugenia, com alguns pesquisadores sugerindo que o aprimoramento genético pode ser uma forma moderna de eugenia. No entanto, a maioria dos cientistas rejeita essa ideia, afirmando que a seleção genética levanta sérios dilemas éticos e morais.
(11:32) A afirmação de Dawkins no Twitter foi amplamente criticada, mesmo do ponto de vista biológico. O conceito de "melhoria" na evolução não faz sentido, pois a evolução não busca "melhorar" organismos, mas sim adaptar-se ao ambiente.
(12:01) A ideia de que a evolução serve para melhorar os organismos não faz sentido nem do ponto de vista evolutivo, nem genético. A seleção natural é um processo de adaptação ao ambiente, não de aperfeiçoamento. Quando aplicamos esse conceito de "melhora" à eugenia, caímos em um problema ético e científico. A evolução é sobre adaptação ao ambiente, não sobre criar organismos "melhores".
(12:38) Esse conceito de melhoria é perigoso, principalmente ao ser aplicado a seres humanos. Ao selecionarmos características humanas que consideramos "melhores", eliminamos variabilidade genética, o que pode ser prejudicial à sobrevivência da espécie.
(13:10) O exemplo mais claro de como a seleção artificial pode ser prejudicial é o caso de raças de cães, que sofrem de problemas de saúde devido à seleção de características desejáveis, como focinhos achatados que causam problemas respiratórios.
(13:41) Quando voltamos à eugenia, fica claro que as características que consideramos benéficas são escolhidas por quem detém o poder. No início da eugenia, por exemplo, ser pobre era considerado uma doença hereditária, e havia ideias de impedir pessoas pobres de se reproduzirem para eliminar a pobreza.
(14:49) Um problema grave é a suposição de que determinadas características são determinadas exclusivamente pela genética, desconsiderando fatores socioeconômicos. Galton, por exemplo, acreditava que a inteligência de sua família era hereditária, ignorando o fato de que eles eram ricos e tinham acesso a melhor educação.
(15:20) A relação entre causa e efeito de certas características já foi mal interpretada antes. Por exemplo, um estudo dos anos 1950 sugeria que casas com bibliotecas produziam filhos mais inteligentes, quando na verdade, a presença de livros estava correlacionada com pais mais educados que valorizavam o estudo.
(16:55) Outro ponto controverso na declaração de Dawkins é que ele defende a teoria da seleção natural, que depende da variabilidade genética. A eugenia, ao contrário, propõe eliminar variabilidade, o que poderia prejudicar a espécie humana a longo prazo.
(17:28) O que surpreende é Dawkins trazer à tona o tema da eugenia no atual contexto político, em que movimentos conservadores e racistas estão em ascensão globalmente, inclusive no Brasil, Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra.
(18:31) O próprio Dawkins foi acusado recentemente de comentários racistas, ao dizer que os sinos da Catedral de Oxford são mais agradáveis ao ouvido do que o chamado à oração dos muçulmanos.
(19:09) As distinções raciais defendidas pelos primeiros eugenistas não têm base biológica. Estudos mostram que as diferenças genéticas entre indivíduos de uma população podem ser maiores do que entre indivíduos de populações diferentes.
(19:42) Compreender a eugenia do ponto de vista biológico revela que ela não faz sentido genético nem evolutivo. Entender suas origens morais no século XIX e sua aplicação até meados do século XX é fundamental ao discutir as afirmações de Dawkins.
(20:17) Há duas possíveis explicações para o tweet de Dawkins. A primeira é que ele realmente concorda com certos aspectos morais e éticos da eugenia. A segunda é que ele simplesmente não soube usar as redes sociais, como ele mesmo afirmou ao tentar justificar sua declaração.
(20:50) Independentemente das intenções de Dawkins, é essencial que entendamos conceitos científicos para formar uma sociedade crítica, capaz de discutir temas tão delicados como este. E é isso, pessoal! [...]
A defesa moderna da eugenia, exemplificada pelas declarações controversas de Richard Dawkins, revela que ainda há vozes na sociedade que promovem a ideia de controle genético com base em supostas melhorias. Embora Dawkins argumente que a eugenia "funciona" em animais, a extrapolação dessa ideia para os seres humanos ignora completamente os dilemas éticos, morais e sociais envolvidos. Além disso, a ciência evolutiva, amplamente defendida por Dawkins, não valida a eugenia como um meio de "melhorar" a espécie humana, pois a seleção natural busca adaptação ao ambiente, não aprimoramento.
A eugenia, quando aplicada à sociedade humana, abre espaço para justificativas perigosas de discriminação e opressão, especialmente contra grupos vulneráveis, como pessoas com deficiência, reforçando a necessidade de vigilância constante contra discursos que possam reviver esses ideais. A normalização da ideia de "melhoria" da espécie humana por meio da seleção genética, promovida por figuras proeminentes como Dawkins, apoia ideologias historicamente utilizadas para justificar políticas de eliminação de pessoas com deficiência, pessoas pretas, pessoas pobres, pessoas LGBTQIA+ e outros grupos considerados "inferiores".
A relação entre eugenia e capacitismo é uma expressão clara de como a exclusão de pessoas com deficiência sempre foi tratada como uma "solução" para a criação de uma sociedade "melhorada". Ao defender a eliminação da deficiência, a eugenia reforça o capacitismo, que enxerga a deficiência como um problema a ser erradicado, em vez de reconhecê-la como parte da diversidade humana que deve ser acolhida.
O princípio subjacente à eugenia é a crença na superioridade de alguns indivíduos sobre outros com base em características biológicas, o que gera um terreno fértil para todo tipo de discriminação. A retórica de Dawkins, ao comparar seres humanos com animais e plantas, pode parecer inofensiva à primeira vista, mas sua popularização pode criar um ambiente onde a eliminação de características "indesejáveis" seja aceita ou discutida como uma possibilidade válida. Isso, por sua vez, pode abrir portas para discriminações ainda mais severas.
A naturalização de discursos eugenistas por figuras influentes não apenas reaviva ideias perigosas do passado, mas também reforça preconceitos já existentes, como o capacitismo. Isso perpetua uma visão de sociedade em que a diversidade humana é vista como um problema a ser corrigido, e não como uma riqueza a ser celebrada e respeitada. A aceitação dessas ideias pode gerar políticas e práticas que marginalizam ainda mais grupos vulneráveis, transformando uma sociedade que deveria lutar por inclusão e igualdade em uma que reforça a exclusão e a discriminação.
É essencial que a sociedade se mantenha vigilante contra esses discursos, especialmente quando vindos de figuras influentes, e continue questionando, de forma crítica, as ideias que ameaçam os princípios de direitos humanos e dignidade para todas as pessoas.
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Afinal, o que é capacitismo?
O capacitismo começou a ganhar destaque nos anos 1990, mas foi só a partir dos anos 2000 que o termo passou a ser mais conhecido e discutido. Hoje em dia, ele está se tornando mais comum. Para entender melhor o capacitismo, serão exploradas as ideias de três estudiosos: Campbell, Wolbring e Goodley.
Campbell foi uma das primeiras a estudar a deficiência de forma crítica. Seus trabalhos de 2001, 2008 e o livro Contours of Ableism (2009) são referências importantes nessa área. Ela argumenta que o capacitismo está baseado na ideia de que existe um "padrão ideal" de corpo e habilidades, considerados melhores e mais valiosos do que outros tipos de corpos. Isso afeta a maneira como as pessoas pensam e agem, levando à percepção de que aqueles que não seguem esse padrão "perfeito" são "anormais" ou "errados".
Segundo Campbell, o capacitismo é:
"[...] uma rede de crenças, processos e práticas que cria um tipo específico de corpo e identidade — o padrão corporal —, visto como perfeito, típico da espécie e, por isso, essencial e totalmente humano. A deficiência, então, é mostrada como um estado inferior do ser humano." (CAMPBELL, 2001, tradução, p. 44)
Esse trecho mostra que o capacitismo faz com que as pessoas enxerguem quem tem deficiência como “menos valioso” por causa de seus corpos, como se quem não tem deficiência fosse "superior". É uma maneira de organizar as pessoas de forma hierárquica.
Na sociedade, "desde que uma criança nasce, ela já entra em um mundo que manda a mensagem de que ser uma pessoa com deficiência é ser inferior" (CAMPBELL, 2009, p. 17, tradução)
Essas ideias, como outras na sociedade, influenciam a forma como as pessoas com deficiência constroem sua identidade. Isso faz com que muitas tentem incansavelmente buscar uma “cura” ou “superação” para serem minimamente aceitas. Esse processo cria um ciclo de dificuldades e frustrações, porque, mesmo com adaptações, assistência médica e tecnologias disponíveis, é impossível viver dentro dos padrões considerados "normais" ou fingir que a deficiência pode ser totalmente ignorada (CAMPBELL, 2009).
Esse fenômeno é chamado de internalização do capacitismo, e suas consequências incluem baixa autoestima, raiva, desprezo pelo próprio corpo e problemas de saúde mental, causados pela ansiedade de esperar por avanços médicos ou tecnologias melhores. Essa busca incessante pela "normalidade" faz com que pessoas com deficiência, suas famílias e instituições foquem na "superação", deixando de lado a qualidade de vida no presente. Além disso, muitas vezes há um esforço para esconder a deficiência ou esforçar-se para adequar-se aos padrões "normais", tentando ser "diferente" das outras pessoas com deficiência que, supostamente, não "se dedicam" o suficiente (CAMPBELL, 2009).
Com base em Campbell (2001), Wolbring (2008a) sugere que o capacitismo afeta tanto a forma como alguém se vê quanto como vê outras pessoas. Para Wolbring, o capacitismo vai além das relações entre pessoas com e sem deficiência; é uma forma de ver, entender e se relacionar com o mundo.
"O capacitismo reflete o sentimento de certos grupos e estruturas sociais que valorizam e promovem certas habilidades, como produtividade e competitividade, em detrimento de outras, como empatia, compaixão e gentileza. Essa preferência por algumas habilidades leva a rotular desvios reais ou percebidos, ou a falta de habilidades 'essenciais', como um estado diminuído de ser, justificando outros tipos de discriminação." (WOLBRING, 2008a, p. 253, tradução.)
Na visão de Wolbring, o capacitismo cria discriminações não só entre pessoas com e sem deficiência, mas também afeta a forma como as pessoas se relacionam consigo mesmas e com o mundo, levando à inferiorização de certos grupos (WOLBRING, 2008a).
Goodley também é um autor importante nesse debate e, em sintonia com Campbell (2009), argumenta que a discriminação e a auto-discriminação refletem a opressão e o sofrimento vividos por aqueles que não se encaixam nos padrões de “normalidade” e capacidade.
O capacitismo destaca a ideia de que algumas habilidades são consideradas melhores do que outras. Seguindo a linha de pensamento de Campbell (2009), Goodley alerta que o capacitismo faz com que as pessoas tentem, de forma desesperada, se encaixar em um padrão de suposta "normalidade", que valoriza corpos tidos como "capazes", "independentes", "saudáveis" e "produtivos". Isso acaba gerando discriminação, auto-discriminação, opressão e sofrimento para quem não consegue se ajustar a esses padrões.
Em outras palavras, o capacitismo consiste em uma forma de discriminação que estabelece um "padrão ideal" de corpo e habilidades, valorizando aqueles que se encaixam nesse modelo como "superiores" e tratando as pessoas com deficiência como "menos valiosas" ou "inferiores". O problema maior é que esse pensamento afeta não só a forma como as pessoas com deficiência são vistas pelos outros, mas também como elas se veem.
A pressão para se encaixar nesse padrão faz com que muitas tentem incansavelmente "superar" ou "esconder" suas deficiências, o que gera frustração e sofrimento. Mesmo com os avanços médicos e tecnológicos disponíveis, não é possível viver como se a deficiência não existisse; por isso, buscar uma vida de acordo com os padrões de "normalidade" que são socialmente impostos é uma tarefa inalcançável. Esse ciclo constante de tentar ser "normal" pode causar problemas de autoestima, saúde mental e até auto-rejeição.
Como Wolbring aponta, a sociedade tende a valorizar mais a competitividade e a suposta "produtividade" como consequência da sua estrutura de produção e consumo; isso acaba reforçando a discriminação e criando uma hierarquia de pessoas, onde aquelas que não correspondem ao padrão estabelecido são vistas como menos importantes.
O que deve ficar nítido é: a inclusão de pessoas com deficiência e o combate ao capacitismo não deve se basear na ideia de "superação", mas sim na valorização da diversidade humana e no respeito às diferenças. O "se" de "se você se curar" ou "se você se esforçar" não deve ser uma condição para o norteamento das políticas públicas e das ações de inclusão.
Estudos sobre o capacitismo no Brasil
Até onde se sabe (sim, não se pode afirmar com certeza absoluta), a primeira vez que se buscou traduzir o termo ableism para o português foi em Portugal, na Universidade de Coimbra, por Pereira (2008), em seu mestrado. A própria autora afirma que, até então, não havia nenhuma tradução para o termo em português.
No Brasil, o termo "capacitismo" foi encontrado pela primeira vez na literatura acadêmica em Bentes (2012); no entanto, o autor não o define, apenas o utiliza. A primeira definição do termo em português feita na literatura acadêmica brasileira — pelo menos a que foi possível encontrar — foi em Dias (2013), que o define como:
“concepção presente no social que lê as pessoas com deficiência como não iguais, menos aptas ou não capazes para gerir as próprias vidas.” (DIAS, 2013, p. 2)
Na dissertação de mestrado de Mello (2014), a autora discute a materialização do capacitismo, que, segundo ela, ocorre:
“[...] através de atitudes preconceituosas que hierarquizam sujeitos em função da adequação de seus corpos a um ideal de beleza e capacidade funcional.” (MELLO, 2014, p. 53-54)
Ainda de acordo com Mello (2014), o capacitismo é:
“[...] uma postura preconceituosa que hierarquiza as pessoas em função da adequação dos seus corpos à corponormatividade. É uma categoria que define a forma como as pessoas com deficiência são tratadas de modo generalizado como incapazes (incapazes de produzir, de trabalhar, de aprender, de amar, de cuidar, de sentir desejo, de ter relações sexuais etc.), aproximando as demandas dos movimentos de pessoas com deficiência a outras discriminações sociais, como o sexismo, o racismo e a homofobia.” (MELLO, 2014, p. 94-95)
De acordo com Gesser, Block e Mello (2020, p. 18), o capacitismo segue a lógica do "normal/desvio":
“As capacidades normativas que sustentam o capacitismo são compulsoriamente produzidas com base nos discursos biomédicos que, sustentados pelo binarismo norma/desvio, têm levado a uma busca de todos os corpos a performá-los normativamente como 'capazes', visando se afastar do que é considerado abjeção.”
Ou seja, o texto indica que a sociedade tem certas ideias sobre o que é ser "normal" ou "capaz", e essas ideias são amplamente influenciadas pela medicina, que classifica as pessoas como "normais" ou "desviantes". Assim, a sociedade pressiona as pessoas a parecerem "capazes" para evitar preconceito ou discriminação.
Ainda nas palavras de Gesser, Block e Mello (2020, p. 18), o capacitismo é:
“[...] estrutural e estruturante, ou seja, ele condiciona, atravessa e constitui sujeitos, organizações e instituições, produzindo formas de se relacionar baseadas em um ideal de sujeito que é performativamente produzido pela reiteração compulsória de capacidades normativas que consideram corpos de mulheres, pessoas negras, indígenas, idosas, LGBTI e com deficiência como ontológica e materialmente deficientes.”
Traduzindo, essa citação afirma que o capacitismo está profundamente enraizado na sociedade e influencia o funcionamento de suas estruturas. Ele molda pessoas, organizações e instituições, afetando a forma como as pessoas se relacionam entre si. Como resultado, a sociedade tende a valorizar apenas certos tipos de habilidades e trata aqueles que fogem desse padrão como menos capazes ou menos valiosos, o que leva à discriminação e à exclusão desses grupos.
O capacitismo está tão presente em nossos pensamentos e na organização da sociedade que estabelece uma classificação dos corpos com base em suas habilidades, mesmo em instituições e entre pessoas que buscam defender os direitos das minorias (IVANOVICH; GESSER, 2020). Essa visão capacitista encara as pessoas com deficiência como incapazes de sentir, amar, aprender, desejar e serem desejadas, limitando o exercício pleno de seus direitos (GESSER; BLOCK; HENRIQUE NUERNBERG, 2019).
Devemos entender a deficiência como uma das várias formas possíveis de existência. Como destacam Ivanovich e Gesser (2020, p. 17):
“[...] é necessário quebrar com os padrões normativos de independência ligados à lógica capacitista e reconhecer que as relações de dependência e interdependência fazem parte da natureza humana.”
O capacitismo da pessoa com deficiência
Comentário da autora
A seguir, será abordado um assunto que eu vejo ser pouco discutido, mas que é de suma importância para a compreensão do capacitismo: o capacitismo da pessoa com deficiência. Afinal, a pessoa com deficiência é uma PESSOA, como tal também vive em um mundo capacitista, e muitas vezes reproduz discursos e práticas capacitistas.
Não estou me referindo a reprodução do capacitismo internalizado, que a pessoa tem consigo mesma, mas sim a reprodução do capacitismo em relação a outras pessoas com deficiência, seja da mesma ou de outra deficiência. E, não se trata de culpabilizar as pessoas com deficiência que são capacitistas, mas de reconhecer que o capacitismo também é presente em nossas comunidades e que é necessário desconstruí-lo.
Não reconhecer que as pessoas com deficiência também podem reproduzir discursos e ser capacitistas é ignorar a complexidade das relações sociais e a influência do capacitismo em nossas vidas. Além disso, é como se estivéssemos negando que as pessoas com deficiência também são seres humanos, com suas contradições, suas lutas e suas vivências. O fato de sermos pessoas com deficiência não nos isenta de sermos capacitistas, mas nos desafia a reconhecer e desconstruir essas práticas.
A descrição do evento a seguir ilustra bem o que estou querendo dizer...
Em 2019, o empresário Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan, gerou grande polêmica ao gravar um vídeo criticando a obrigatoriedade de instalar piso tátil e disponibilizar cadeiras de rodas motorizadas em uma de suas lojas em Chapecó (SC). No vídeo, ele mostrava o piso tátil na entrada da loja e dizia: "Olha só essa loja linda, maravilhosa. Cheguei aqui na porta e colocaram isso aqui". Hang afirmava que o piso "leva o nada ao lugar nenhum" e o chamava de "porcaria que não vale nada".
Além disso, ele questionava a necessidade de placas indicando vagas reservadas para idosos e pessoas com deficiência, referindo-se a elas como resultado de ações "populistas". Também reclamou da exigência de oferecer cadeiras motorizadas para clientes com mobilidade reduzida, argumentando que seus funcionários poderiam ajudar essas pessoas sem a necessidade desses equipamentos.
As declarações de Luciano Hang causaram indignação em diversos setores da sociedade. A Organização Nacional dos Cegos do Brasil (ONCB) emitiu uma nota oficial repudiando suas falas, destacando que "todo local privado de uso coletivo está sujeito a inúmeras regulamentações" e que as pessoas com deficiência contam com a Lei Brasileira de Inclusão para garantir seus direitos.
Eis que surge Jelres Freitas, advogado e presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB de Sumaré (SP). Ele é uma pessoa com deficiência, usuário de cadeira de rodas, e apareceu ao lado de Luciano Hang em um vídeo publicado nas redes sociais do empresário.
No vídeo, gravado durante a inauguração de uma loja em Sumaré, Jelres Freitas expressa apoio às críticas de Hang sobre a obrigatoriedade do piso tátil. Ele afirma:
"Existem barreiras muito piores do que a ausência de um piso tátil, que por vezes atrapalha as outras pessoas que utilizam cadeira de rodas ou muletas. Essas pessoas se sentem lesadas" (JELRES FREITAS, 2019).
Freitas também mencionou que, como presidente da comissão, repudiava o excesso de burocracia e que continuaria lutando para que tais exigências não fossem implementadas em sua cidade. Hang agradeceu o apoio e convidou Freitas para a inauguração da nova loja.
O jornalista Filipe Oliveira, que é cego, escreveu um artigo na Folha de São Paulo abordando o assunto. Ele destacou que pisos táteis mal projetados ou instalados de forma inadequada realmente não cumprem seu papel. Porém, em vez de culpar a exigência legal, a responsabilidade deveria recair sobre quem os instala sem o devido cuidado.
"Se muitos pisos táteis são inúteis ou perigosos, a culpa é de quem exige que o coloquem?", questiona Oliveira. Ele reforça que empresários deveriam ver essas medidas como investimentos na inclusão de clientes potenciais, e não como burocracia.
Para saber mais
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Reportagem sobre o caso Luciano Hang e a acessibilidade em sua loja em Chapecó
(SC)
Disponível em: Luciano Hang ofende cegos e idosos -
Artigo de Filipe Oliveira sobre o caso
Disponível em: Pessoa com deficiência não é vista como cliente em quem vale a pena investir
O caso de Luciano Hang e Jelres Freitas ilustra bem como o capacitismo pode se manifestar entre pessoas com deficiência. Freitas, ao apoiar as críticas de Hang à acessibilidade, reproduziu discursos capacitistas que desvalorizam a importância de medidas inclusivas para pessoas com deficiência.
Comentário da autora
Vamos entender! Primeiro, temos um empresário que, por ser rico e influente, não percebe que tá envelhecendo; é como se isso não fizesse diferença porque seus privilégios o protegem das dificuldades que as pessoas mais velhas enfrentam. Ele usa suas redes sociais de forma consciente para mostrar seu incômodo com as regras de acessibilidade que são exigidas por lei e pela prefeitura de Chapecó.
Ele basicamente sugere que pessoas cegas não conseguiriam chegar à loja dele sozinhas e que, se chegassem, poderiam contar com a "ajuda" dos funcionários. Isso é capacitismo? Com certeza! Como disse o jornalista Filipe Oliveira, esse empresário dá a entender que a pessoa com deficiência "não é vista como cliente em quem vale a pena investir".
Aí entra em cena nosso "amigo" Jelres Freitas, presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB de Sumaré (SP). Ele é uma pessoa com deficiência? Sim! Usa cadeira de rodas? Sim! Tem o direito de dar sua opinião sobre o caso? Claro que tem! Mas foi isso que ele fez? Ele se posicionou como pessoa com deficiência dando sua OPINIÃO? Não! Definitivamente, não foi isso que ele fez.
No vídeo do Luciano Hang, o Jelres usou sua posição como presidente da Comissão da OAB e o fato de ser uma pessoa com deficiência para defender o empresário. Naquele momento, ele não estava apenas dando sua opinião pessoal; ele tentou dar peso ao que o empresário dizia, como se fosse o porta-voz da comunidade de pessoas com deficiência, usando sua posição e sua deficiência como garantias de que o empresário estava certo.
Foi como se dissesse: "Eu, Jelres Freitas, presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB de Sumaré (SP) e pessoa com deficiência, endosso o que Luciano Hang está falando", assumindo o papel de "embaixador", "representante" e "porta-voz" das pessoas com deficiência. Isso não foi apenas uma opinião pessoal; foi uma tentativa de usar sua posição para dar força a um argumento fraco, como se dissesse: "Se eu tô dizendo, então é verdade".
Por que estou falando disso? Pra mostrar uma forma de capacitismo que, na minha opinião, quase não é discutida: o capacitismo entre as próprias pessoas com deficiência.
Pode parecer óbvio, mas não é! Pessoas com deficiência são pessoas que crescem numa sociedade capacitista, e isso afeta não só como elas se veem, mas também como enxergam outras pessoas com deficiência. Eu sou cega e já vi muitos vídeos de pessoas influenciadoras que são cegas e que não incluem descrição de imagem, como se esses vídeos fossem voltados apenas para pessoas sem deficiência.
Uma comunidade de pessoas com deficiência muitas vezes é capacitista com outras pessoas com deficiência, porque muita gente não se preocupa em aprender sobre deficiências que não são as suas. O resultado? Pra muitas pessoas com deficiência, a luta por acessibilidade acaba sendo só pela acessibilidade que elas precisam. Cada deficiência vira um "grupo" separado, e as pessoas se juntam com quem tem a deficiência mais parecida com a delas, sem perceber que ainda têm atitudes capacitistas em relação às outras deficiências.
Quantas pessoas que usam cadeira de rodas, como o Jelres Freitas, desconsideram as necessidades de pessoas com outras deficiências? Quantas pessoas cegas não usam termos como "retardado" de forma pejorativa, perpetuando o capacitismo? Pessoas com deficiência também podem ser machistas, racistas, homofóbicas e, claro, capacitistas, porque elas também são parte dessa sociedade.
As pessoas com deficiência enfrentam o capacitismo da sociedade sem deficiência e o preconceito entre as diferentes comunidades de PCDs. É como se houvesse uma "hierarquia" das deficiências, onde cada um tenta evitar ser "a pior" na escala, repetindo o mesmo preconceito que a sociedade impõe.
O problema é que os opressores são muitos — a sociedade toda, basicamente — e as pessoas com deficiência são uma minoria que ainda se fragmenta em pequenas comunidades que perpetuam o capacitismo e lutam cada uma do seu jeito. Fica muito mais difícil organizar ações coletivas e lutar por mudanças institucionais com essa divisão. A sociedade parece muito mais unida pra oprimir do que nós, pessoas com deficiência, estamos pra lutar. Brigamos por coisas pequenas e perdemos força na luta contra quem realmente nos oprime.
Eu sou cega e, todos os dias, preciso desconstruir meus preconceitos e aprender sobre pessoas com outras deficiências, não porque sou uma pessoa "melhor", mas porque quero um mundo menos capacitista para todas as pessoas. Não só um mundo menos capacitista para pessoas cegas. Só vamos conseguir ter mais força e organização política quando conhecermos nossas diferenças, nos acolhermos como uma grande comunidade, e lutarmos por uma acessibilidade realmente universal — de dentro das nossas bolhas de pessoas com deficiência para a sociedade inteira.
Alguns exemplos de capacitismo que repercutiram na mídia

Descrição da imagem: Captura de tela de uma notícia publicada no site g1, na seção 'Rio Grande do Sul'. O título da matéria destaca que uma vereadora em Porto Alegre se tornou ré por injúria racial contra um servidor e discriminação contra estagiárias com deficiência. O texto menciona que a vereadora Lourdes Sprenger (MDB) teria chamado estagiárias de 'debilóides' e alegado que elas não tinham condições de exercer suas funções. Além disso, a vereadora teria se referido ao chefe das estagiárias como 'aquele professor preto, sujo e burro', conforme denúncia do Ministério Público. A matéria foi escrita por João Pedro Lamas e publicada em 24 de abril de 2024.
Comentário da autora
Essa notícia é já ilustra bem o que será discutido a seguir: exemplos de capacitismo na mídia. O propósito é mostrar como o capacitismo está presente em diversas esferas e também mostrar como argumentos capacitistas são usados para justificar a exclusão.
Sobre a "querida" (contém muita ironia) vereadora Lourdes Sprenger, vamos aos fatos de acordo com o G1...
Caso vereadora Lourdes Sprenger
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Denúncia e Aceitação pela Justiça:
- A vereadora de Porto Alegre, Maria de Lourdes dos Santos Sprenger (MDB), se tornou ré na Justiça do Rio Grande do Sul.
- Foi acusada de injúria racial e discriminação contra servidor e estagiárias com deficiência.
- Denúncia do Ministério Público (MP) foi aceita pela Justiça em 15 de abril de 2024.
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Acusações Contra a Vereadora:
- Ofensas racistas e intolerância religiosa proferidas contra um servidor público negro da Câmara de Vereadores.
- Falas discriminatórias contra três estagiárias com deficiência.
- Vereadora chamou o servidor de "professor preto, sujo e burro" e fez menções a sua religião de matriz africana.
- Chamou as estagiárias de "debilóides" e afirmou que não tinham condições para as funções.
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Investigação da Polícia Civil:
- O conflito teria surgido porque a vereadora considerava as estagiárias inaptas para o trabalho, enquanto o chefe delas queria mantê-las nas posições.
- O servidor público acabou exonerado em outubro de 2023 por determinação da vereadora.
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Defesa da Vereadora:
- Lourdes Sprenger nega as acusações e afirma que não há provas, classificando as denúncias como "disse-me-disse".
- Alega que as denúncias vêm de pessoas que ela exonerou por divergências administrativas.
- Pretende apresentar defesa jurídica com auxílio de seu advogado.
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Posição da Câmara de Vereadores:
- A Câmara de Vereadores aguarda o desfecho do processo na Justiça para adotar medidas, se necessário.
- O presidente da Câmara, Mauro Pinheiro (PP), afirmou que até 23 de abril de 2024, não havia denúncias protocoladas no Legislativo.
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Repetição dos Incidentes:
- As situações de injúria racial e discriminação teriam se repetido ao longo de 2023.
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Histórico da Vereadora:
- Lourdes Sprenger é vereadora eleita com a bandeira da causa animal, no terceiro mandato.
- Natural de Gravataí, é contadora e trabalhou como auditora em uma estatal.
Comentário da autora
O que temos aqui? Supostamente...
- Uma vereadora que, supostamente, considerava três estagiárias com deficiência como "inaptas" para o trabalho e o seu "grande argumento" foi discriminá-las por um ano inteiro chamando-as inclusive de "debilóides".
- Essa mesma vereadora, supostamente, teria chamado um servidor de "professor preto, sujo e burro" e feito menções à sua religião de matriz africana. Tudo isso porque ele "ousou" discordar dela e querer manter as estagiárias em seus postos de trabalho.
Vamos imaginar que tudo isso seja, supostamente, verdade. Temos aqui uma vereadora, uma servidora pública, que teoricamente deveria representar a população COMO UM TODO, que teoricamente deveria ser guardiã da constituição e dos direitos de TODAS as pessoas e que, não podemos esquecer, é uma pessoa pública, que é paga com o dinheiro PÚBLICO.
O que deveria ser bem óbvio, mas que muita gente parece não entender, é que não importa o que você pensa ou acredita, a lei é clara: discriminação é crime. Ponto. Além disso, se você é uma pessoa pública que exerce um cargo público, como o de uma vereadora, você é pago com o dinheiro público de impostos que TODAS as pessoas pagam.
No meio desses impostos, tem o dinheiro de pessoas com deficiência, de pessoas pretas, de pessoas com religiões de matriz africana, de familiares e amigos dessas pessoas, de pessoas LGBTQIA+, de pessoas idosas, de pessoas pobres, de pessoas de todas as camadas sociais. O governo não devolve o dinheiro de pessoas que são discriminadas por ele e seus representantes, também não devolve o dinheiro de pessoas que não concordam com a discriminação.
Portanto, não se trata de "caridade" ou "bondade" de uma vereadora ou de qualquer outra pessoa pública, mas de um DEVER. O governo, teoricamente, é pago para zelar e garantir os direitos e acesso a serviços de todas as pessoas, quando isso não acontece, temos um ROUBO. Sim, porque é isso que é: roubo.
Eu contribuinte, pago você governante para legislar, fiscalizar e garantir que haja uma estrutura social que não tolere a discriminação, que garanta a igualdade de oportunidades, que promova a inclusão e a diversidade, que provisione serviços de saúde, educação, transporte, moradia, trabalho, lazer, cultura, segurança, assistência social, previdência, entre outros, para todas as pessoas com qualidade e de forma acessível. O que eu, contribuinte, recebo em troca? Uma estrutura sucateada, negligente, discriminatória, excludente, violenta, corrupta e que ainda me culpa por isso.
A vereadora Lourdes Sprenger, supostamente, não só falhou em cumprir com seu dever de representar a população, mas também falhou em cumprir com a lei, que é clara: discriminação é crime. E, se ela não entendeu isso, a Justiça está aí para explicar, ou pelo menos deveria estar. Isso não tem haver com "humanidade" ou "boa fé" ou "caridade", mas com a LEI. Ela recebe um salário para cumprir com a LEI, salário pago com o dinheiro de TODAS as pessoas, inclusive de pessoas com deficiência, de pessoas pretas e de pessoas com religiões de matriz africana.
Existem governantes que entendem o povo como subalterno, se sentem superiores e se veem como "donos" do poder, como se fossem "deuses" que podem decidir quem come e quem passa fome, quem tem acesso a serviços e quem não tem, quem tem direitos e quem não tem, quem é humano e quem não é. Na verdade são apenas pessoas que foram eleitas e que quando não cumprem com seus deveres, quando subvertem a máquina pública para o seu benefício próprio, quando discriminam e excluem, quando violam os direitos humanos, quando cometem crimes, devem ser responsabilizadas e punidas porque estão ROUBANDO a sociedade descaradamente e dizendo para a lei: "otária, eu faço o que eu quiser".
Criança com deficiência é deixada na escola enquanto colegas foram a passeio

Descrição da imagem: Captura de tela de uma notícia publicada no site Estadão, na seção 'Comportamento'. O título destaca que um menino com deficiência foi deixado na escola enquanto os colegas foram para um passeio. A reportagem menciona que a mãe de João, de 9 anos, relatou o caso nas redes sociais, o que gerou grande repercussão e levou a uma resposta da Secretaria de Educação. O caso ocorreu em Belo Horizonte, onde João, que tem paralisia cerebral e usa cadeira de rodas, foi deixado na escola enquanto a turma foi ao cinema, apesar de sua mãe ter autorizado sua participação. A mãe expressou frustração com a falta de inclusão e pediu maior capacitação dos profissionais da área.
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O Caso:
- João, um menino de 9 anos com paralisia cerebral que usa cadeira de rodas, foi deixado na escola enquanto os colegas foram ao cinema.
- A mãe, Adriane Cruz, relatou o ocorrido nas redes sociais, mencionando que a escola alegou que João não iria gostar do passeio, mesmo após a mãe afirmar que ele gostava e podia participar.
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Repercussão e Resposta da Escola:
- João ficou circulando pelos corredores da escola das 7h às 11h20, acompanhado por seu cuidador.
- A mãe descobriu que João não participou do passeio ao ser informada pela responsável do transporte escolar.
- Com a repercussão do relato no Facebook, que teve mais de 3 mil compartilhamentos, a Secretaria de Educação de Belo Horizonte se reuniu com a escola e pediu desculpas.
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Contexto de Inclusão na Escola:
- Adriane relata que, desde que João está na atual escola, ele não foi convidado para participar de eventos, incluindo a festa junina.
- A escola justificou a exclusão de João com motivos como "está frio", "ele grita" e "não sabem qual será a reação dele".
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Atuação da Mãe e Associação AMI:
- Adriane é presidente da Associação Mães que Informam (AMI) e afirma que casos de exclusão escolar não são pontuais, mas sim constantes e diários.
- Ela defende que o problema está na falta de capacitação adequada dos profissionais da educação para lidar com estudantes com deficiência.
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Resposta da Secretaria de Educação:
- A Secretaria de Educação de Belo Horizonte afirmou que o ocorrido não reflete a política de inclusão da rede municipal.
- Destacou que todas as escolas são orientadas a garantir a participação de estudantes com deficiência.
- A rede possui 46 salas de Atendimento Educacional Especializado (AEE) e oferece treinamentos constantes para monitores de apoio.
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Críticas e Demandas:
- Adriane enfatiza que os profissionais da educação precisam de capacitação adequada.
- Ela quer que as mães sejam ouvidas e que medidas efetivas sejam tomadas para melhorar a inclusão escolar, além de destacar que a inclusão deve ir além do aprendizado acadêmico e incluir aspectos culturais e sociais.
Comentário da autora
E se eu te contar que, por aí, tem professores, gestores e outras pessoas que trabalham em escolas e acham que o que aconteceu nesse caso é completamente "normal" e até certo? Isso já me aconteceu tantas vezes que eu poderia escrever um artigo inteiro só com essas histórias. Vou contar uma:
Em 2006, quando eu tinha uns 10, 11 anos, estava no 6º ano (a antiga 5ª série), em Barreiras, Bahia, minha cidade natal. Estudava numa escola municipal chamada Centro Educacional Sagrado Coração de Jesus, e odiava aquele lugar. Era meu primeiro ano lá e, quando chegou o Sete de Setembro, a época dos desfiles na avenida principal da cidade, uma professora veio conversar comigo.
Ela disse que eu não ia desfilar com a turma. Mesmo sendo criança, perguntei por quê, e ela me disse que “não dava”, porque eu não tinha como andar em linha reta, que eu “costurava rua”. Fiquei arrasada. Na minha família, tinha um monte de professoras e policiais militares, todos desfilavam na avenida, e o resto da família ia ver. Era um evento pra gente.
Contei pra minha tia que não ia desfilar, já meio conformada, e ela perguntou o motivo. Repeti o que a professora disse, na maior inocência. A casa virou um tribunal. Minhas tias discutiam, algumas achando que a professora tinha razão, outras não. Minha mãe e meus avós ficaram revoltados.
No dia seguinte, minha mãe foi pra escola falar com a coordenadora e a diretora. Elas discordaram do que a professora disse, mas queriam ouvir a versão dela, então chamaram a professora na direção. Ela repetiu tudo o que me disse e ainda completou: “Mãe, ela precisa entender que ela não é normal...”, falou como se estivesse pedindo açúcar pro café.
Minha mãe quase partiu pra cima da professora, e depois de muito barraco, chegou a um acordo com a coordenadora e a diretora: eu ia desfilar sim, mas com minha mãe do lado. E foi o que aconteceu. Tudo isso pra andar uma avenida no sol quente no Sete de Setembro, coisa que outros estudantes fazem quase que obrigados.
Esse foi só um episódio. Perdi a conta de quantas feiras do livro, feiras de ciência, gincanas eu fiquei de fora, literalmente de fora, em casa, vendo novela porque era "dispensada" das aulas nesses dias.
Assim como comigo, a história do João, um menino de 9 anos com paralisia cerebral que ficou na escola enquanto os colegas foram a um passeio, mostra como a sociedade e as instituições ainda falham em reconhecer a humanidade das pessoas com deficiência.
As escolas públicas são financiadas por todo mundo, incluindo as pessoas com deficiência e suas famílias. Isso implica que todas as crianças deveriam ter os mesmos direitos, sem exceção. Quando uma escola exclui uma criança de um passeio, ela falha não só com a criança e sua família, mas também com o princípio de igualdade que deveria guiar os serviços públicos, ela falha com a sociedade.
As escolas públicas têm muitos problemas, mas o que aconteceu com João escancara como as falhas do sistema acabam pesando ainda mais nas costas das pessoas com deficiência. Enquanto alunos sem deficiência são cobrados com frases como "você tem que estudar", "vai virar vagabundo", os alunos com deficiência enfrentam um tratamento diferente: são excluídos com desculpas como “não temos formação”, “não temos recursos”, “ele não pode participar”. Esse duplo padrão é uma prova gritante da falta de compromisso com a inclusão e reflete uma prática constante de negligência e discriminação.
Essa lógica leva a um apoio forçado para “escolas especiais”, uma forma de educadores evitarem se atualizar e lidar com a inclusão.
Mas talvez o mais doloroso seja a desumanização das pessoas com deficiência. A escola não viu João como um garoto de 9 anos que queria se divertir no cinema com os colegas, mas como um problema. Esse tipo de desumanização é uma forma de violência que vai além da falta de formação ou recursos; é uma falha em reconhecer essas pessoas como seres humanos plenos.
A inclusão vai além de uma obrigação legal, é sobre reconhecer a dignidade de todas as pessoas. O que João viveu não se resolve só com treinamentos ou regras, mas com uma mudança profunda na forma como a sociedade vê as pessoas com deficiência, reconhecendo que elas merecem respeito, acolhimento e participação plena.
Caso da professora gravada dizendo: "Isso é falta de uma boa surra" para criança com autismo

Descrição da imagem: Captura de tela de uma notícia publicada no site g1, na seção Fantástico. O título destaca que uma professora foi gravada dizendo 'isso é falta de uma boa surra' para uma criança com autismo em São Paulo. A matéria menciona que o Fantástico mostrou vídeos de agressão em uma escola estadual de Sales Oliveira, SP, onde pais descobriram o que ocorria por meio de gravações de áudio e vídeo que captaram gritos e ameaças dirigidos aos alunos.
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Resumo do Caso Apresentado no Fantástico:
- O programa Fantástico exibiu dois casos de agressões de educadores contra alunos com deficiência em escolas de São Paulo.
- Em um dos casos, os pais de um menino de 12 anos com autismo descobriram que ele era humilhado em sala de aula após colocarem um gravador na mochila do filho.
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Detalhes da Agressão:
- A gravação captou gritos de uma professora, que disse frases como: “Isso é falta de tomar uma boa surra, viu menino? Se você fosse meu filho, você não teria mais pernas porque eu tinha quebrado as duas!”
- As gravações foram feitas na sala de aula de uma escola particular na Zona Norte de São Paulo.
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Contexto da Situação:
- Os pais perceberam que o filho resistia a ir à escola, mas não explicava o motivo.
- A situação se agravou quando o menino foi para o sexto ano, com mais professores, aumentando as queixas sobre o comportamento dele na escola.
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Reação dos Pais e Ações Legais:
- Após ouvir as gravações, os pais registraram um boletim de ocorrência por discriminação por motivo de deficiência contra a diretora e moveram uma ação indenizatória contra a diretora e a escola.
- Os pais destacaram o impacto emocional, relatando noites sem dormir e dificuldades de falar sobre o assunto.
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Resposta da Escola e Ações Futuras:
- A diretora Andrea Claudia Camargo, que foi mencionada nas gravações, não respondeu aos pedidos de entrevista do Fantástico.
- A produção do programa tentou contato com a secretária e um advogado da escola, sem sucesso.
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Impacto no Aluno e na Família:
- A família relatou medo e desconfiança de deixar o filho em instituições após o ocorrido.
- O aluno foi transferido para uma escola pública, onde está em fase de adaptação.
Comentário da autora
Esse caso traz à tona uma realidade dolorosa, mas que precisa ser discutida: a violência e o desprezo que muitas crianças com deficiência enfrentam nas escolas, instituições que, em vez de serem espaços de acolhimento e desenvolvimento, acabam se tornando cenários de abuso e discriminação. Uma professora, paga para educar e proteger, foi flagrada dizendo que o comportamento de uma criança com autismo era “falta de uma boa surra”. Ela ainda afirmou que, se fosse seu filho, ele “não teria mais pernas porque ela teria quebrado as duas”. Esse tipo de fala, além de ser uma violência verbal, revela o quão desumanizador pode ser o ambiente escolar para alunos com deficiência.
O que temos aqui? Uma educadora que deveria ser uma figura de confiança, transformando-se em agressora. E, assim como nos casos mencionados anteriormente, essas atitudes não são incidentes isolados; são reflexos de um sistema que falha em proteger e respeitar seus alunos mais vulneráveis. É fácil imaginar que, por trás de cada uma dessas crianças, existem famílias que confiaram na escola para cuidar e ensinar seus filhos, e que, em troca, receberam humilhação, medo e traumas.
Esses episódios mostram que a discriminação contra pessoas com deficiência vai muito além da falta de formação ou recursos. Ela está enraizada em uma falta de empatia, na desumanização constante, onde se vê a deficiência antes da pessoa. Essa professora, assim como a vereadora que chamava suas estagiárias de “debilóides” e um servidor de “preto, sujo e burro”, usou de sua posição para oprimir e destruir a autoestima de quem deveria proteger.
A verdade é que, para muitas pessoas que estão em posições de liderança, como professores e gestores escolares, cumprir a lei e respeitar os direitos humanos não é uma questão de compromisso, mas sim um incômodo que muitas vezes tentam contornar com abusos e violência. As escolas, sejam públicas ou particulares, deveriam ser um reflexo de uma sociedade que inclui e respeita a diversidade. Mas, quando uma professora de uma escola particular vê em um aluno com autismo apenas um “problema” que merecia “uma surra”, isso expõe um abismo gigantesco na forma como tratamos a inclusão.
Essa história, como tantas outras, não deveria ser vista como uma exceção ou um caso isolado. É um sintoma de uma doença maior que afeta o nosso sistema educacional e a nossa sociedade. A inclusão não é um favor, e a proteção das crianças, especialmente das mais vulneráveis, é um dever de todos. É preciso uma mudança cultural profunda, que vá além de simples treinamentos, e que transforme de fato a maneira como vemos e tratamos as pessoas com deficiência. Enquanto isso não acontecer, as histórias de agressões, exclusões e violências continuarão sendo contadas, e o sistema seguirá falhando com as famílias que ele deveria servir.
Considerações finais
O capacitismo, forma de discriminação que afeta diretamente pessoas com deficiência, é uma das manifestações de preconceito mais difundidas e menos reconhecidas na sociedade. Este artigo buscou explorar o capacitismo em sua complexidade, revelando como ele está profundamente enraizado em ideias históricas de inferioridade, reforçadas por estereótipos que se perpetuam até os dias atuais. Ao tratar a deficiência como algo a ser corrigido ou superado, o capacitismo desumaniza e exclui, criando barreiras que vão além da acessibilidade física, impactando também a autoestima, as oportunidades e o direito de existir plenamente como parte da diversidade humana.
A análise apresentada evidencia que o capacitismo não é um fenômeno isolado; ele está intimamente ligado a outras formas de discriminação, como racismo, machismo e eugenia, todos fundamentados na crença equivocada de que alguns corpos e habilidades são superiores a outros. A falta de conhecimento e a simplificação do preconceito em um termo genérico como "discriminação" dilui as especificidades do capacitismo, dificultando o combate eficaz a essa forma de exclusão. Nomear o capacitismo e compreender suas raízes é essencial para desenvolver políticas e ações que realmente promovam inclusão e respeito.
As manifestações de capacitismo se estendem desde atos cotidianos de exclusão até políticas e práticas institucionais que perpetuam a marginalização de pessoas com deficiência. Para avançar na luta contra o capacitismo, é crucial que a sociedade adote uma abordagem que vá além da mera punição legal e se comprometa com a transformação cultural e educacional. Isso envolve questionar discursos que normalizam a exclusão, denunciar práticas eugenistas contemporâneas e promover uma educação inclusiva que valorize todas as pessoas em suas singularidades.
Reconhecer o capacitismo como uma discriminação específica e grave é o primeiro passo para mudar atitudes e construir uma sociedade mais justa e igualitária. Somente ao entender e combater os preconceitos que estão na base do capacitismo, poderemos criar um ambiente em que a deficiência seja vista como uma característica da diversidade humana e não como um problema a ser resolvido. O desafio é grande, mas essencial: precisamos redefinir a forma como enxergamos e tratamos as pessoas com deficiência, promovendo a verdadeira inclusão que respeite e valorize a diversidade.
Referências
- ÁVILA, E. D. E S. Capacitismo como queerfobia. In: FUNCK, S. B.; MINELLA, L. S.; ASSIS, G. DE O. (Eds.). Linguagens e narrativas: desafios feministas. Tubarão: Copiart, 2014. v. 1. p. 131-156.
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